Aliada contra câncer, vacina de HPV ainda sofre preconceito e adesão aquém da esperada no Brasil

Uma vacina capaz de impedir alguns tipos de câncer. O que parece uma notícia sonhada já é uma realidade. Mas o curioso é pensar que boa parte da população não está aproveitando essa oportunidade por desinformação e preconceito.

Trata-se da vacina contra o HPV, o papilomavírus humano. Este vírus é responsável por praticamente todos os casos de câncer de colo do útero, a principal causa de morte oncológica de mulheres na região Norte e a segunda nas regiões Nordeste e Centro-Oeste, tendo provocado mais de 6.500 óbitos no país só em 2019.

De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), tirando o câncer de pele não melanoma, o câncer de colo do útero é o terceiro tumor maligno mais frequente na população feminina (atrás do câncer de mama e do colorretal), e a quarta causa de morte de mulheres no Brasil relacionada à doença.

Não bastasse isso, há outros tipos de câncer relacionados ao HPV: boca e orofaringe, vulva, pênis e canal anal. Estudo realizado pela Sociedade Americana de Oncologia Clínica mostra que, nos últimos 17 anos, diminuiu a ocorrência de tumores cervicais ou de colo de útero nos EUA, porém os diagnósticos destes outros tipos de tumores ligados ao vírus, sendo alguns até mais comuns em homens, continuam cada vez mais frequentes.

Com a vacina, de acordo com estudo publicado no New England Journal of Medicine, a redução da incidência do câncer de colo de útero é de 90%. O oncologista Fernando Maluf, da Beneficência Portuguesa e do Hospital Albert Einstein, ambos em São Paulo, diz que a situação é “angustiante”, porque de cada dois casos desse tipo de tumor um é fatal, já que as pacientes chegam com diagnósticos de doença avançada:

— Nossa angústia é que trata-se de um tumor que poderia ser evitado. Nos países que fazem a vacinação em massa e controle, como a Austrália, você quase não vê câncer de colo de útero. Apesar disso, vemos uma incidência absurda no país.

Origem sexual

Diante desse cenário dramático, é quase difícil entender por que as pessoas não tomam a vacina. A base do problema é que o HPV é um vírus sexualmente transmissível. Por isso, a imunização com duas doses deve ocorrer antes do início da vida sexual, para mulheres e homens. A vacina é recomendada, portanto, a partir dos 9 anos de idade.

A raiz do problema está na crença errônea de que a vacina seria um passe livre ou incentivo ao sexo. O objetivo, porém, é apenas garantir que a pessoa, quando começar a ter alguma atividade sexual, seja aos 15, 18 ou 25, estará protegida do vírus.

Em 2014, o Ministério da Saúde introduziu no Sistema Único de Saúde a imunização gratuita contra o HPV em meninas de 9 a 13 anos de idade, com a vacina quadrivalente. Esta faixa etária foi escolhida por ser a que apresenta maior benefício pela grande produção de anticorpos e por não ter sido exposta ao vírus. Em 2017, as meninas de 14 anos também foram incluídas. O esquema vacinal também foi ampliado para meninos de 11 a 14 anos.

No entanto, mesmo nos consultórios de alguns pediatras e ginecologistas, a informação sobre a vacina ainda é passada de forma subjetiva. A jornalista Fernanda d’Avila tem uma filha, Alice, que acaba de completar 11 anos. Quando ela tinha 10 anos, já estava combinado que ia tomar a vacina, mas a pediatra afirmou, diante da menina, que poderia adiar a imunização:

— Ela disse para esperar mais um pouquinho porque “menina assim não precisa tomar tão cedo”. Os pais chegam cheios de dúvidas e as orientações são do século retrasado. Vão criando preconceitos e tudo acaba sendo motivo para a própria criança questionar a vacinação — conta d’Avila, que mais tarde, com o início da imunização contra Covid, teve dificuldade de levar a filha.

Segundo a jornalista, na turma da escola, uma das mães contou que a recomendação que recebeu do médico era vacinar a filha “quando parasse de se interessar por bonecas e passasse a se interessar por bonecos”.

Para o infectologista Filipe Veiga, a comunicação sobre a vacina do HPV vem sendo feita de maneira equivocada desde o começo.

— A vacina do HPV foi mal abordada, como se fosse uma vacina contra doenças sexualmente transmissíveis. Muitas famílias entenderam como um aval para que as crianças pudessem ter relações sexuais. Os pais têm dificuldade de entender que não é uma liberação para a atividade, apenas uma vacina contra um vírus que induz ao câncer. A comunicação foi muito mal conduzida — lamenta.

Outro aspecto que envolve muitos preconceitos é a vacinação dos garotos:

— Com os meninos a vacinação é mais recente. E aí vem essa pergunta: por que precisam? É necessário entender que a vacinação para o menino não é para proteger a menina, não é um favor, eles também estão sujeitos ao câncer de pênis e de laringe. Há desinformação — afirma Veiga. — Mas acho que, com o tempo, a vacina vai se estabelecer.

Hoje a cobertura vacinal contra o HPV está, entre as meninas, em torno de 70% para uma dose e 50% para duas doses. Já entre os meninos, menos de 50% tomaram a primeira dose. São números bem abaixo do esperado e dificultam o cumprimento da meta da OMS de eliminar o câncer de útero até 2030.

Difícil acesso

Para Renato Kfouri, médico pediatra e também diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o problema maior é o acesso:

— Vacinação de adolescentes só avança quando é feita nas escolas O adolescente não vai à unidade de saúde. Não é como a criança, que a mãe pega e leva, ele tem que ser convencido. Esperar que o adolescente acorde e vá se vacinar é fracasso total. Só contra a Covid, para poder ir para balada, sair, viajar, aí a motivação é maior. Mas contra o HPV, que é uma vacina preventiva, só levando para as escolas. Os países que têm sucesso fazem isso.

Mas o próprio Kfouri reconhece que a logística é complicada. As escolas estão sobrecarregadas no momento, com a volta às aulas em meio à pandemia, e ainda teriam que organizar dias de vacinação, filas, carteiras, receber equipes de saúde, fazer controle de efeitos adversos, convencer adolescentes com medo de agulha etc. Ou seja, seriam novos obstáculos não só para o sistema de saúde mas também para a educação.

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