Cuidados paliativos em pacientes com covid-19 motiva debate sobre inclusão da prática no currículo de medicina

[São Paulo] –  O senso comum entende os cuidados paliativos como um tipo de cuidado indicado pelos médicos quando um paciente está próximo da morte. “Mas, idealmente, cuidados paliativos deveriam se iniciar quando a pessoa é diagnosticada com alguma doença que compromete a vida dela ”, diz a estudante de Medicina Gabrielle Cordeiro Trofa, 24 anos. Aluna do quinto ano na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), neste ano Gabrielle foi voluntária numa das enfermarias que o Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP montou para receber pacientes com covid-19. A experiência dela e de outros estudantes que atuaram como voluntários os uniu em torno de uma pauta: a inclusão desse tipo de cuidado no currículo do curso de graduação em Medicina.

Gabrielle foi voluntária justamente na enfermaria provisória de cuidados paliativos. Ela fez parte de um grupo de cinco estudantes que ajudaram a equipe de saúde em um projeto de comunicação com as famílias dos pacientes. A principal responsabilidade dos jovens foi organizar visitas virtuais: vídeochamadas realizadas por meio de tablets e robôs de telemedicina, nas quais os pacientes internados e seus familiares tiveram a oportunidade de se ver e conversar.

“A gente estava lá para fazer essas visitas virtuais, mas acabava entrando em contato na prática dos cuidados paliativos”, conta Gabriele. “Participavámos de reuniões familiares, que também estavam acontecendo on-line, vendo como se comunicar efetivamente, como dar uma má notícia e, mesmo longe, os profissionais conseguiam mostrar compaixão, o quanto se importavam com os pacientes, o quanto todos estavam ali fazendo o melhor pra cuidar deles. Então a gente acabava atendendo muito nesse sentido também”, completa a estudante da FMUSP.

Com as atividades práticas do curso de Medicina suspensas devido às medidas de distanciamento social, os estudantes que se dedicaram ao trabalho voluntário no HC enfrentaram o pior período da pandemia dentro do complexo hospitalar. Eles estavam lá quando, em julho, o Brasil registrou 319.389 casos confirmados de covid-19 e 7.714 mortes em apenas uma semana, segundo dados das secretarias estaduais de saúde compilados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Desse total de mortes, 1.870 foram no Estado de São Paulo.

O que é cuidado paliativo?

Segundo Ricardo Tavares, do Núcleo de Cuidados Paliativos do HC, o cuidado paliativo é definido pela OMS desde 1990, mas o conceito vem passando por aprimoramentos ao longo do tempo. O campo da saúde compreende o cuidado paliativo como uma prática multiprofissional que tem como objetivo promover a qualidade de vida de uma pessoa que esteja em sofrimento por lidar com uma doença que coloque em risco sua vida. A definição mais moderna inclui também como beneficiários desse tipo de cuidado pessoas em sofrimento por outros motivos, como crises humanitárias. No Brasil, os cuidados paliativos chegaram no inicío da década de 2010.

Distante da graduação

Embora o HC tenha um programa de residência em cuidados paliativos desde 2014, os estudantes avaliam que o tema ainda é distante da graduação. Talvez, por isso, o conhecimento do tema pelos médicos ainda seja algo limitado. “Muita gente ainda nos chama na proximidade da morte. Dias, semanas antes da morte. Temos uma atuação que acaba sendo limitada por uma limitação de tempo”, lamenta o médico Ricardo Tavares, coordenador do Núcleo Técnico-Científico de Cuidados Paliativos do HC.

Ele explica que a associação entre os cuidados paliativos e o momento da morte vem de uma definição desatualizada. “Na década de 1990, era uma prática que estava ligada principalmente ao câncer e muito mais relacionado ao fim da vida. Hoje, entendemos o cuidado paliativo como uma promoção de qualidade de vida. Isso não tem relação com a morte, necessariamente. É qualidade de vida para um doente que tem uma doença grave, com risco de morte iminente ou não, mas que esteja em sofrimento por qualquer motivo. Psíquico, físico, familiar”, diz Ricardo.

Ricardo Tavares, coordenador do Núcleo Técnico-Científico de Cuidados Paliativos do HC – Foto: Reprodução/FMUSP

“O foco é o sentimento humano de qualquer natureza, num contexto relacionado a uma doença e, atualmente, até em outros contextos, como contextos de fragilidade, crises humanitárias. Como foi a história do covid, como a questão dos refugiados, minorias, populações oprimidas”, afirma o coordenador do núcleo do HC. O médico faz questão de ressaltar também que a prática não é uma área de atuação somente médica, já que exige sempre uma equipe de saúde multidisciplinar, composta de profissionais com diferentes formações – incluindo psicólogo, enfermeiro e fisioterapeuta.

Estudantes da FM trabalharam ao lado de médicos do HC para atender os pacientes com covid-19 na enfermaria de cuidados paliativos
Experiência de estudantes da FM junto aos médicos do Núcleo de Cuidados Paliativos do HC inspirou iniciativa para fomentar discussão sobre o tema na graduação (foto registrada antes da pandemia) – Foto: Acervo pessoal

Aprendendo na prática

Foi vendo os resultados desse tipo de trabalho que os estudantes decidiram se organizar para colocar mais colegas em contato com a prática de cuidados paliativos. O primeiro passo foi propor à coordenação do núcleo uma ampliação do voluntariado, trazendo os estudantes que estavam trabalhando em outras enfermarias do HC para participar do projeto da enfermaria de cuidados paliativos.

“Começaram na enfermaria de cuidados paliativos essas visitas virtuais, mas outras enfermarias tentaram fazer um projeto para o hospital, que funcionou, mas com um número de visitas muito menor. Lá nos cuidados paliativos, a gente fazia efetivamente todo dia. Propomos chamar esses alunos que estavam envolvidos em outras enfermarias para ter acesso ao que era fazer cuidados paliativos e aprender também”, diz Gabrielle.

 

A estudante do quinto ano, que já havia participado da Liga Acadêmica de Cuidados Paliativos em anos anteriores, lembra da experiência de cuidar de uma paciente que tinha um câncer avançado, sem perspectiva de cura. Como os outros pacientes da enfermaria, ela tinha desenvolvido uma forma grave de covid-19 depois do diagnóstico da doença terminal e a equipe do hospital avaliou que uma internação na UTI não a beneficiaria.

“Ela estava isolada, com covid, e sofrendo muito por estar lá sozinha. Ela sempre falava, ‘vocês me abandonaram, vocês não vêm me visitar’. E aí, o momento em que íamos fazer a visita virtual era um momento de muita felicidade para ela,  que efetivamente via todos os filhos, conversava e contava mil coisas”, conta Gabrielle.

Segundo a jovem, numa dessas visitas, a paciente comentou que estava com muita vontade de tomar um suco de graviola. “Fui numa lojinha aqui perto, comprei o suco de graviola e dei para ela no dia seguinte”, conta a estudante, explicando que na enfermaria de cuidados paliativos, “a prioridade, a urgência, é o que traz mais qualidade de vida para o paciente ali.”

Liga de Cuidados Paliativos

É uma das mais de cem ligas mantidas pelos estudantes da FM com o apoio dos professores da casa. Essas ligas organizam atividades extracurriculares e têm a função de proporcionar espaços de formação em determinados temas. As ligas selecionam os participantes por meio de provas e oferecem cursos introdutórios. Mas a experiência de participar de uma liga é bastante diferente da prática que a emergência da pandemia de coronavírus proporcionou.

 

Apesar da doença terminal, essa paciente se recuperou da infecção pelo coronavírus. E não foi a única.  “A gente teve um número bastante expressivo de alta. Para essa gravidade, para essa condição em pacientes já com doença terminal, a gente chegou a dar alta para quase 25% deles. E todos receberam visita por videochamada”, afirma Ricardo.

 

Com o fim do voluntariado, os estudantes decidiram levar o tema para as ferramentas digitais que estão sendo utilizadas no ensino à distância, de forma a divulgá-lo para mais colegas, e chamar uma primeira reunião virtual para debater a inclusão dos cuidados paliativos na grade curricular do curso de medicina. O objetivo, segundo Gabrielle, é iniciar a discussão de uma proposta que possa ser levada aos professores da FMUSP.

 

Fonte: Jornal da USP

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