Doença da urina preta: o que se sabe sobre possível surto no Amazonas

A 176 quilômetros de Manaus, a cidade de Itacoatiara chamou a atenção das autoridades sanitárias do Amazonas nos últimos dias. Desde 22 de agosto, dezenas de moradores do local apresentam um quadro chamado rabdomiólise, marcado pela destruição das fibras que compõem os músculos do corpo.

No mesmo período, indivíduos de outros cinco municípios do Amazonas (Silves, Manaus, Parintins, Caapiranga e Autazes) também foram diagnosticados com a mesma condição.

Todos os 44 casos registrados até o momento estão sendo investigados, mas a principal suspeita é que esses indivíduos tenham sido acometidos pela doença de Haff, conhecida popularmente como “doença da urina preta”.

Conhecida desde a década de 1920, a enfermidade está relacionada a uma toxina que é encontrada em peixes e crustáceos.

É justamente essa substância que provoca as lesões nos músculos e pode até danificar seriamente os rins.

Mas o que explica o surto no Amazonas? Quais são as formas de prevenção, diagnóstico e tratamento? Saiba o que já se conhece e o que ainda falta saber sobre essa doença.

Mistério no Báltico

 

De acordo com um artigo escrito em 2013 por especialistas do Hospital São Lucas Copacabana, no Rio de Janeiro, o nome da moléstia tem a ver com a sua origem.

Os primeiros relatos sobre ela são de 1924 e vêm da região litorânea Könisberg Haff, que fica próxima do Mar Báltico. Atualmente, esse local integra a cidade de Kaliningrado, que pertence à Rússia e faz fronteira com Lituânia e Polônia.

À época, os médicos que trabalhavam no local descreveram um quadro de início súbito, com “rigidez muscular, frequentemente acompanhada de urina escura”.

Após a publicação dos primeiros relatos, foram registrados novos casos no local durante os nove anos seguintes. Eles ocorriam principalmente entre o verão e o outono e tinham um fator em comum: o consumo de pescados.

Doença está associada ao consumo de peixes. — Foto: Getty Images

Doença está associada ao consumo de peixes. — Foto: Getty Images

“Devido à ausência de febre e pelo rápido início dos sintomas após a ingestão de peixe cozido, acredita-se que a doença de Haff seja causada por uma toxina”, escrevem os autores brasileiros. De lá para cá, novos surtos foram registrados em outros países, como a antiga União Soviética, a Suécia, os Estados Unidos e a China.

No Brasil, os primeiros casos foram identificados em 2008 e 2009. O momento de maior gravidade aconteceu em 2017, quando a Bahia contabilizou 71 pacientes com a doença, 66 deles na capital Salvador.

Sintomas e diagnóstico

 

Como é rara e pouco estudada, a doença de Haff não possui uma lista fechada de manifestações.

Os principais incômodos são dores musculares poucas horas após o consumo de peixes ou crustáceos.

“Geralmente nós vemos essa dor muscular se concentrar na região do trapézio, dos ombros e do pescoço”, diz o médico Luis Filipe Miranda, do Serviço de Nefrologia do Hospital Português da Bahia, em Salvador.

Principais incômodos são dores musculares poucas horas após o consumo de peixes ou crustáceos. — Foto: Marcelo Moreira/Rede Amazônica

Principais incômodos são dores musculares poucas horas após o consumo de peixes ou crustáceos. — Foto: Marcelo Moreira/Rede Amazônica

 

Alguns pacientes também apresentam dor no peito, falta de ar, sensação de dormência, náusea, tontura e fraqueza.

Outro sintoma característico é a urina escura (daí seu nome popular), que se assemelha à cor do café.

Acredita-se que o causador do distúrbio seja alguma toxina encontrada em espécies de peixes (caso de salmão, pacu, enguia e vários outros, tanto de água doce quanto de salgada) e crustáceos (como lagostas, lagostins e camarões).

Até o momento, os cientistas não identificaram qual é a toxina por trás da enfermidade.

“Desde os primeiros casos em 1924 tenta-se descobrir que substância é essa, mas até o momento não se encontrou nada específico”, reforça Miranda.

“Não se sabe também como o pescado adquire essa toxina. Suspeita-se de mudanças no ecossistema, presença de toxinas de cianobactérias ou metais pesados, mas até o momento não foram identificados níveis tóxicos dessas substâncias”, completa o nefrologista.

Pelo que se sabe, todas essas repercussões no corpo têm a ver com a tal da rabdomiólise, uma destruição progressiva das fibras que compõem os músculos esqueléticos (aqueles responsáveis pelas nossas contrações e movimentos).

Com o tempo, o conteúdo dessas células musculares é despejado no sangue, o que muitas vezes leva a uma segunda complicação: a insuficiência renal.

Isso acontece porque um dos componentes das células musculares é a mioglobina, uma enzima tóxica para os rins.

De acordo com o artigo do Hospital São Lucas Copacabana, o diagnóstico da doença de Haff pode ser feito no próprio consultório, com a análise dos sintomas e a confirmação de que o paciente comeu peixe nas últimas 24 horas.

Para ter 100% de certeza, é possível fazer exames de sangue que determinam a destruição muscular. Eles medem o nível de enzimas como a mioglobina e a creatinofosfoquinase.

Tratamento e prevenção

 

Na maioria das vezes, o quadro costuma evoluir bem, mas há risco de morte, especialmente em pessoas com comorbidades.

O indicado é procurar ajuda logo após o aparecimento dos primeiros sintomas para que o diagnóstico seja feito o mais rápido possível.

Quando o paciente precisa ficar internado, uma das principais formas de tratamento é fazer uma hidratação reforçada.

Uma boa quantidade de líquidos permite “dissolver” e diminuir a concentração de impurezas no sangue, o que facilita o trabalho dos rins.

“Nós também suspendemos o uso de medicações que podem lesionar ainda mais os músculos e os rins, como as estatinas e os anti-inflamatórios”, complementa Miranda.

Quando os rins já estão acometidos, muitas vezes é preciso apelar para a hemodiálise (procedimento em que uma máquina faz a filtração do sangue por um período específico ou pelo resto da vida daquela pessoa).

Se os recursos terapêuticos já são escassos, a prevenção da doença de Haff é ainda mais incerta. Não há nada específico que possa ser feito para evitar a enfermidade.

Não existem formas de identificar a toxina: ela não tem cheiro, gosto ou cor e não desaparece após o cozimento da carne.

“Em linhas gerais, a orientação é procurar um hospital quando aparecem os sintomas nas primeiras 24 horas após o consumo do peixe ou do crustáceo e não fazer uso de medicamentos por conta própria”, conta Miranda.

O que falta saber sobre o surto do Amazonas?

 

De acordo com a última nota publicada no site da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), até 30 de agosto haviam sido identificados 44 casos de rabdomiólise.

A cidade mais afetada é Itacoatiara, com 34 pacientes e 1 óbito. Na sequência, aparecem os municípios de Silves (4 casos), Manaus (2), Parintins (2), Caapiranga (1) e Autazes (1).

“Nesta segunda-feira (30/8), seguem internadas 10 pessoas, todas de Itacoatiara. Os demais pacientes receberam alta hospitalar”, informa a entidade.

Por ora, as autoridades locais seguem investigando o problema e não confirmam oficialmente que o surto seja realmente da doença de Haff, embora essa seja a principal suspeita.

Isso porque a rabdomiólise pode ter outras causas, como traumatismos, atividade física extenuante, crises de convulsão, uso de medicamentos e álcool, ingestão de metais pesados ou consumo de alimentos, como os pescados.

Em outra nota publicada no site do FVS-AM, especialistas dizem que a população não precisa deixar de comer pescados, até porque eles formam a base da alimentação amazonense.

“O importante é entender que, se formos comparar o nível de consumo de peixe com o número de casos [de rabdomiólise], a gente vê que é uma relação mínima, porém, não menos preocupante. Qualquer situação que coloque em risco a saúde das pessoas deve ser avaliada com cuidado, as pessoas devem ser tratadas da maneira mais adequada possível e temos que ter preocupação também com o aspecto econômico e nutricional”, orienta no texto o infectologista Antonio Magela, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, em Manaus.

“Ainda trabalhamos no campo das hipóteses. Pode ser uma bactéria, um vírus, ou até mesmo uma toxina. As pessoas têm um quadro clínico sugestivo de intoxicação, após a ingesta alimentar, e é de evolução rápida. Até hoje, em todas as situações que isto ocorreu, com todas as análises de amostras, de tecidos, não se conseguiu ainda dar uma confirmação da causa real desses casos de rabdomiólise, que são associados à prévia ingestão de peixes”, completa o infectologista.

Desde 2017, outros casos suspeitos ou confirmados da doença de Haff foram relatados não apenas no Amazonas, mas também em Ceará, Alagoas, Bahia, Pernambuco e Goiás.

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