Novas regras podem dificultar gravidez por fertilização no Brasil

SÃO PAULO — A professora de inglês e assistente virtual Vivian Cerqueira Sampaio, de 40 anos, sonhava ser mãe. Aos 36 anos, começou a tentar engravidar, mas o processo se mostrou mais difícil do que ela imaginava. Depois de um aborto espontâneo e mais de um ano de tentativas frustradas, Vivian e o marido resolveram buscar um especialista. Após muitos exames e a notícia de que a endometriose poderia estar atrapalhando, eles partiram para a fertilização in vitro (FIV). Mas o tão desejado bebê não chegou. Ao menos não imediatamente. Foi apenas na terceira tentativa que isso aconteceu e hoje, grávida de cinco meses, ela espera radiante a chegada do pequeno Cadu.

Nesse processo, Vivian passou por diversos momentos em que pensou em desistir. Mas logo a vontade falava mais alto.

— Eu entendi que, para mim, ser mãe é um sonho. O problema é que eu tinha medo de muitas coisas e isso aumentou depois da primeira perda. Acredito que precisamos usar os recursos da medicina a nosso favor e estou superfeliz que deu certo — comemora.

O caso de Vivian está longe de ser isolado. A reprodução assistida vem ajudando a realizar o sonho de um número cada vez maior de pessoas. Ainda não há dados sobre quantas fertilizações in vitro foram realizadas em 2020, mas o último levantamento disponível feito pela Anvisa, revela que em 2019 foram 44.663 procedimentos. O número é 3,6% maior que no ano anterior e mais que o dobro da quantidade de ciclos realizada em 2012. Além da FIV, existem outras opções de tratamento para infertilidade, incluindo indução da ovulação com namoro programado e inseminação intrauterina – a famosa inseminação artificial. Mas, em muitos casos, a fertilização in vitro, quando o embrião é formado em laboratório, é a única indicação possível.

Resolução restritiva

Nas últimas décadas, o procedimento evoluiu muito, com a incorporação de novas tecnologias que aumentaram a taxa de sucesso, ao mesmo tempo em que tornaram o procedimento mais seguro para a mãe e o bebê. Entretanto,  alguns acontecimentos recentes no Brasil colocam o futuro da prática em risco. Por exemplo, a nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), válida desde 15 de junho, restringe a oito o número de embriões que podem ser gerados em laboratório em tratamentos de reprodução assistida.

Crescimento da prática no Brasil Foto: Editoria de Arte
Crescimento da prática no Brasil Foto: Editoria de Arte

A norma, que  regulamenta a reprodução assistida no país, representa um retrocesso em relação à anterior, que não estabelecia um limite. Segundo especialistas, a decisão dificulta e encarece o processo, em especial para mulheres com óvulos de qualidade já comprometida e quando é necessário realizar a análise genética para selecionar embriões saudáveis.

Em tratamentos de fertilização ocorre o chamado funil da fertilidade. Da fecundação dos óvulos ao desenvolvimento dos embriões, as perdas são grandes. Para se ter ideia, um estudo feito pelo Brigham Women’s Hospital, ligado à Universidade Harvard, nos EUA, indica no mínimo o dobro — 16 óvulos — para obter bons resultados. Para o ginecologista especialista em reprodução assistida, Maurício Chehin, coordenador científico do Grupo Huntington, é difícil entender os motivos que levaram o CFM a esse tipo de limitação.

— Do ponto de vista científico, é um retrocesso técnico dentro da especialidade porque à medida que eu limito o número de embriões, eu limito as chances de gestação e o custo do tratamento. Cada país tem regras próprias, mas a enorme maioria tem regras menos restritivas do que essa. Antes dessa resolução o Brasil estava mais alinhado ao que acontece ao redor do mundo — diz Chehin.

Outro fato recente que pode impactar o futuro do acesso ao procedimento é a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que definiu que os planos de saúde não são obrigados a custear a fertilização in vitro, “salvo disposição contratual expressa”. Na prática, a maioria dos planos de saúde não custeava esse tipo de tratamento, mas o que aconteceu nos últimos anos é que muitos pacientes passaram a judicializar a questão e ganhar.

No entanto, o julgamento do STJ acaba com isso de uma vez por todas, já que a decisão foi dada em recurso repetitivo e deverá ser seguida por todos os juízes e tribunais do país. Também é relevante por tratar de um procedimento caro, com preço médio de R$ 20.000. O que o torna inviável para muitos casais. Alguns centros do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecem o serviço, mas a oferta é baixa pela demanda e a fila de espera pode chegar a três anos.

— A decisão do STJ não é uma novidade, mas ela enterra qualquer esperança de que os planos de saúde pudessem vir a cobrir esse tipo de procedimento. A infertilidade é uma doença e como qualquer outra doença, quem a enfrenta teria direito a tratamento. Além disso, o direito ao planejamento familiar está previsto na Constituição — ressalta o especialista em medicina reprodutiva Matheus Roque, da clínica Mater Prime, em São Paulo.

Segundo o especialista, a infertilidade é uma das cinco doenças mais comuns em todos o mundo.

— De 15 a 20% dos casais tem infertilidade e parte dessas pessoas vão precisar de um tratamento de fertilização, que é um tratamento mais efetivo. A infertilidade vem associada a diversos pontos, como aumento de depressão, ansiedade, problemas no relacionamento do casal e no trabalho — finaliza Roque.

Projeto de lei

O último acontecimento, e talvez o que tem maior potencial prejudicial, é um projeto de lei sobre reprodução assistida proposto em 2003 que tramita na Câmara dos Deputados. Criado pelo então senador Lucio Alcantara, filiado ao PSDB do Ceará, o PL 1184/2003 prevê a limitação da fertilização de apenas dois óvulos, a proibição da biópsia embrionária,  do congelamento de embriões e da doação de óvulos, e ainda retira a anonimidade dos doadores de sêmen e das ovodoações já realizadas. A PL ainda prevê a proibição da gestação de substituição, popularmente conhecida como barriga solidária, na qual uma mulher cede o útero para gestar o feto de outra pessoa sem participação genética.

— Caso seja aprovado, isso poderia acabar com a reprodução assistida no Brasil. Esse projeto contraria tudo o que está acontecendo no mundo. Desde o início da medicina reprodutiva no Brasil, nunca houve regras tão retrógradas e isso assusta. Em 2003, quando foi criado ele já era retrógrado, imagina 18 anos depois. A técnica evoluiu muito nesse período — alerta Edson Borges,  especialista em reprodução humana e diretor científico do Fertility Medical Group, em São Paulo.

A infertilidade, definida pelo fracasso em conseguir uma gravidez após 12 meses ou mais de relações sexuais regulares sem proteção, vem crescendo a cada ano. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 48 milhões de casais e 186 milhões de indivíduos têm infertilidade em todo o mundo. No Brasil, são cerca de 8 milhões, segundo os dados mais recentes da Associação Brasileira de Reprodução Assistida. As causas do problema são diversas. Estima-se que cerca de 35% dos casos de infertilidade estão relacionados à mulher, outros 35% ao homem, 20% a ambos e 10% são provocados por causas desconhecidas. Mas, na maioria dos casos, há tratamento.

— O ambiente que vivemos está contribuindo para a diminuição da função e quantidade das gametas masculinos e femininos. Além disso, há uma tendência em adiar a maternidade, o que aumenta a probabilidade de necessitar de algum tratamento de reprodução assistida — explica Borges.

Vale ressaltar ainda que a fertilização in vitro não é indicada apenas para infertilidade. O procedimento também é utilizado para afastar o risco de doenças hereditárias graves, já que possibilita biopsiar os embriões e selecionar o mais saudável antes da implantação no útero da mulher e é a única opção para novos formatos de famílias, como as monoparentais e homoafetivas.

— A reprodução assistida acaba ajudando diversas pessoas de maneiras diferentes, sempre visando a fertilidade, a manutenção da fertilidade e o nascimento de um bebê que não possa ou não esteja acontecendo por vias naturais — diz Maurício Chehin, coordenador científico do Grupo Huntington.

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