Pandemia da Covid-19 elevou número de infecções com superbactérias em UTIs no Brasil

SÃO PAULO — A Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou neste mês os dados mais recentes sobre infecções hospitalares e presença de superbactérias no país, mostrando que os casos de infecção sanguínea em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) cresceram pela primeira vez depois de sete anos em queda.

Infectologistas afirmam que o retrocesso no combate a bactérias tem ligação com a pandemia de Covid-19, causada por um vírus, porque nos meses em que hospitais estavam superlotados os cuidados de prevenção ao contágio foram prejudicados. Além disso, a situação de emergência favoreceu a prescrição desnecessária de antibióticos em muitos casos, que impulsiona o surgimento de patógenos resistentes a esses medicamentos.

Os dados mais recentes da Anvisa são relacionados ao ano de 2020, mas só foram divulgados agora, porque o país não possui um sistema dedicado de monitoramento do problema. O tema da resistência a medicamentos antimicrobianos foi um dos que mais movimentaram o Congresso Brasileiro de Infectologia, realizado de forma remota há poucas semanas.

Entre 2012 e 2019, a taxa de infecção primária da corrente sanguínea laboratorial (IPCSL) por 1.000 pacientes em UTIs adultas caiu progressivamente de 5,8 pontos para 3,9. Em 2020, contudo, sofreu um aumento para 4,3.

A série anual de dados não está consolidada com todos os detalhes ainda, mas médicos afirmam que esse aumento está relacionado à alta taxa de resistência a antibióticos encontrada em 2020.

Duas espécies de bactérias, Klebsiella pneumoniae e Acinetobacter baumanii, se mostraram resistentes a antibióticos em mais de 50% dos casos no contexto de infecções de UTI relacionadas a uso de cateter intravenosos.

O Brasil viu também aumento no número de casos de infecção e resistência antimicrobiana em bactérias do trato intestinal e da Pseudomonas aeruginosa, que se transmite apenas pelo ar.

O problema não é novo, mas em alguns casos, como no uso de antibióticos carbapenêmicos para tratar pacientes com a Acinetobacter, o cenário atingiu um nível extremo: mais de 80% das cepas encontradas no Brasil eram resistentes às drogas.

— Os carbapenêmicos a gente usava como antibióticos de última geração, mas, com o passar dos anos, a gente começou a ter alta taxa de resistência aos carbapenêmicos, e começou a ter dificuldade — conta Ana Cristinna Gales, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que completa: — Há alguns anos eu poderia prescrever carbapenêmicos e teria certeza que a bactéria seria sensível. Hoje eu uso com mais restrição. A resistência é pior no ambiente hospitalar, e durante a pandemia nossas taxas aumentaram.

A médica afirma que o agravamento do problema se deve em boa medida aos períodos em que hospitais ficaram superlotados com doentes de Covid-19. Como serviços de saúde ficaram com equipes insuficientes e transferiram muitos profissionais sem experiência de UTI para essas unidades, era mais difícil fazer o protocolo contra infecções ser seguido com rigidez.

Gales afirma que os números sobre infecções hospitalares e superbactérias em 2021, quando o Brasil sofreu sua mais devastadora onda de Covid-19, podem vir ainda piores que os de 2020.

‘Kit Covid’ contribuiu para situação

O problema, porém, não esteve restrito a UTIs, mas também a medicamentos de uso não-hospitalar. A azitromicina, antibiótico que fazia parte do controverso “kit Covid” do governo federal acompanhando a cloroquina, foi prescrita a muitos pacientes sem sinais de infecção bacteriana, agravando a situação de resistência.

— A azitromicina vem sendo usada para tratar pneumonia e otite bacterianas, mas, após a pandemia, ela vai ter um aumento da taxa de resistência, e não sei se poderá mais ser usada da mesma forma — afirma Gales.

Coinfecções por vírus e bactérias não são incomuns, dizem os médicos, e nem todas as ocasiões em que se prescreve a droga são inadequadas. Precisam, porém, ser mais bem ancoradas em diagnósticos.

Segundo Alexandre Zavascky, professor de infectologia na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), um período particularmente dramático foi quando as polimixinas, os únicos antibióticos de última linha que ainda não enfrentam altas taxas de resistência, faltaram no mercado depois de março. Apesar de a grande onda de Covid-19 ter sido no primeiro semestre, até agora o sistema de saúde sente o problema das bactérias hiper-resistentes.

— Alguns hospitais já começam a voltar para os níveis de resistência anteriores à pandemia, mas existe uma sequela da Covid no ambiente hospitalar e no cuidado da assistência à saúde — afirma o médico. — A situação vai melhorando, mas não desaparece de uma hora para a outra, porque as bactérias ficam e os hospitais precisam se reestruturar.

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