Redes sociais e violência: dos horrores à resistência

Qualquer pessoa que tenha um mínimo contato com sites de redes sociais nos dias atuais deve conhecer episódios de racismo, homofobia, machismo e outras demonstrações de intolerância nesses espaços. A violência online é cada vez mais uma pauta da saúde pública e, por isso mesmo, foi tema da mesa Violência nas redes sociais digitais, realizada no dia 29/7 no Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. O encontro reuniu as pesquisadoras Kathie Njaine, da Fundação Oswaldo Cruz, Iara Beleli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Ligia Moreiras Sena, da Plataforma Cientista Que Virou Mãe, com a coordenação de Suely Ferreira Deslande, também da Fiocruz e do Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde. A discussão focou principalmente na violência em torno da questão de gênero e também apresentou uma perspectiva de resistência e da apropriação da internet como espaço de luta.

Como ponto de partida para suas reflexões, Beleli destacou resultados de um pesquisa que realizou com usuárias de aplicativos de relacionamento, muitas das quais demonstraram forte rejeição ao feminismo – para ela, fruto de um quadro social mais amplo. “A maior visibilidade das lutas contra o racismo, machismo e homofobia tem gerado uma intolerância aos grupos que lutam por direitos, banalizando as manifestações de ódio e transformando a internet num tribunal de inquisição”, afirmou. “Isso se cruza com um cenário social polarizado e com uma moralidade conservadora que apresenta certa visão sobre a pobreza e sobre manifestações culturais como funk e rap, associando-as a uma concepção de caos social.”

A pesquisadora também relembrou as manifestações virulentas de alguns líderes religiosos e figuras políticas após a inclusão de uma citação da filósofa Simone de Beauvoir no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2015. “A alegação de doutrinação ideológica logo foi seguida por acusações de pedofilia contra a francesa. A injúria adquire centralidade em episódios de violência, muitas vezes com a culpabilização das vítimas do ódio – a menina que usava roupa provocante, o jovem negro que ‘tinha cara de bandido’ – e a desqualificação da militância nesse campo com termos como feminazis e ditadura gay”, ponderou. “Por outro lado, o discurso de ódio também assume forma da brincadeira, numa tentativa de não ‘levar a sério’ os conteúdos racistas, homofóbicos e machistas na internet, em especial para desresponsabilizar seus autores, sem questionamentos sobre os significados políticos e sociais de suas afirmações.”

Homofobia no Facebook

Ainda mais radicais foram os exemplos trazidos Kathie Njaine, cujo grupo estuda páginas de conteúdo homofóbico no Facebook, para entender, por exemplo, em que medida seus discursos de ódio se materializam fora da rede. “Em geral, nesses espaços há uma proposição de que a ideologia de gênero é um mal a ser combatido, uma cultura de morte, uma ameaça à vida e à família, que é sagrada”, afirmou.

Para a pesquisadora, a violência simbólica é constitutiva da linguagem desses espaços. “Existe uma arquitetura desses discursos, para criar uma aversão a qualquer ideia associada a gênero que não seja binária, o que é traduzido no mundo offline, por exemplo, em agressões a pessoas LGBT”, afirmou. “O discurso religioso se mistura a falas de maior ‘cientificidade’ de pessoas religiosas ‘especialistas’ na questão de gênero, produzindo um importante fator de confusão na utilização de nomes de instituições, de resultados de estudos, de falas de pessoas públicas…”

Ela destacou, ainda, a forte presença nessas páginas de montagens com intuito de produzir supostos dilemas morais. “Tenta-se criar uma contradição, por exemplo, entre oferecer apoio à causa LGBT enquanto há crianças subnutridas no mundo que também precisam de atenção, ou entre investir recursos em paradas gays enquanto há pobres nas cidades”, explicou a pesquisadora. “Dessa forma, tentam correlacionar essas questões, que são distintas, e criar campos semânticos de apelação aos dilemas morais da humanidade.”

Ativismo e ocupação da rede

Como contraponto à disseminação de ódio, a ativista e pesquisadora Ligia Moreiras Sena apresentou sua experiências no Cientista que virou mãe. Sua plataforma. A plataforma, criada há oito anos, conta com mais de 40 colaboradoras e tem como foco o combate à violência contra mães e bebês antes, durante e após o parto. “É uma grande vitória que a violência obstétrica seja reconhecida hoje e tratada por esse nome, com a construção de toda uma área de pesquisa associada e diversos trabalhos aprovados no Abrascão”, comemorou.

Ela também relembrou uma aposta provocativa realizada no Abrascão 2012, quando inscreveu o documentário “Violência obstétrica: a voz das brasileiras” para uma apresentação de 15 minutos, apostando que a repercussão garantiria espaço para sua apresentação do vídeo de 50 minutos na íntegra, para um público amplo. Deu certo. “O vídeo foi produzido a partir de depoimentos de mães de todo o Brasil sobre experiências pessoais de violência obstétrica, enviados pela internet”, relembrou. “O conteúdo era muito forte. Mais de 15 mulheres afirmaram que o nascimento dos seus filhos foi a pior experiência de violência de suas vidas e que se sentiram em campos de concentração.”

Hoje uma referência na rede para mães que procuram informações sobre gestação, ela incentiva que todos que têm acesso às redes sociais devem utilizá-las em defesa da democracia e contra a violência e o preconceito. “A internet não é terra de ninguém. A América Latina é uma das regiões mais violentas do mundo, mas também possui uma dos maiores índices de mulheres conectadas. A internet tem dono. Aliás, dona”, afirmou. “É um privilégio para uma mulher chegar aos 40 anos, como eu. A Marielle (Franco), por exemplo, só está aqui no Abrascão em forma de nome de tenda [a tenda principal do evento recebeu o nome da vereadora carioca assassinada no início do ano]. Nós precisamos nos apropriar da internet como ferramenta de pesquisa e de enfrentamento a esse show de horrores mostrado nessa mesa, procurando marcar posição, disputar as narrativas, mas nos mantendo abertas ao diálogo”, concluiu.

Na mesma linha, a mediadora Suely Deslandes, encerrou o debate relembrando que a internet é considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como direito humano, justamente por sua riqueza enquanto espaço de trocas informacionais, cognitivas e afetivas. “A rede é uma arena de lutas, de construção de narrativa sobre política, sexualidade, saúde, sobre os principais marco civilizatórios – e que precisa ser ocupada”, defendeu. “As questões da sociabilidade digital são claramente questões de saúde. As violência perpetradas na internet têm evidentes consequências offline, de ordem simbólica, psíquica e na saúde mental. Essa é uma questão ainda nova para a saúde coletiva, mas merece toda a nossa atenção.”

Por Marcelo Garcia (Portal Fiocruz)

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