Transplante de coração de porco para humano inaugura uma nova era na medicina

SÃO PAULO — O recente caso de um americano de 57 anos que recebeu o coração de um porco ganhou as manchetes do mundo todo. Não é para menos. O procedimento dá início a uma nova era para os transplantes. Em outubro do ano passado, uma equipe da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, transplantou o rim de um porco geneticamente modificado para um paciente com morte cerebral. O órgão pareceu funcionar normalmente, mas os pesquisadores só puderam acompanhá-lo por alguns dias. O novo caso, realizado por cirurgiões do Centro Médico da Universidade de Maryland, também nos EUA, é ainda mais emblemático por dois fatores. Primeiro, o receptor, que estava com insuficiência cardíaca terminal, está vivo. Segundo, é um coração, que é um órgão muito mais complexo que o rim.

— Esse é um momento histórico para os transplantes no mundo inteiro — afirma o cirurgião torácico e cardiovascular Fábio Jatene, diretor do Serviço de Cirurgia Cardiovascular do Instituto do Coração (InCor).

O cirurgião relembra que, quando era residente em cirurgia, se dizia que, no futuro, aumentaria muito o número de xenotransplantes. — É uma brincadeira que se fazia, mas que está se tornando realidade.

Para o cardiologista Roberto Kalil Filho, diretor do InCor, isso vai ser uma revolução global em relação aos transplantes. Entretanto, o procedimento não estará disponível de forma rotineira no curto prazo. Ainda há obstáculos médicos e regulatórios significativos a serem superados.

Tentativas frustradas

O xenotransplante, como é chamado o processo de enxerto ou transplante de órgãos e tecidos entre diferentes espécies, é algo que vem sendo perseguido pela medicina há décadas. Ele busca solucionar o principal problema dos transplantes: a escassez de órgãos. Algumas tentativas, inclusive, já foram realizadas anteriormente, sem sucesso.

Na década de 1960, rins de chimpanzés foram transplantados para cerca de uma dúzia de pacientes. Todos, exceto um, morreram em poucas semanas. O que sobreviveu por mais tempo, faleceu em nove meses. Em 1983, um coração de babuíno foi transplantado para um bebê prematuro na Califórnia, que ficou conhecida como Baby Faye. A menina morreu 20 dias depois.

Revolução genética

Tecnologias como clonagem e engenharia genética permitiram a realização do recente transplante. O principal problema é a rejeição imunológica, quando o organismo do receptor ataca o novo órgão. Isso acontece também entre humanos, mas foi extremamente minimizado nos últimos anos graças aos imunossupressores. Entre espécies diferentes, o risco é maior ainda. Para minimizá-lo, o porco foi geneticamente modificado para que seu coração ficasse mais semelhante ao de um humano. O paciente também está recebendo um imunossupressor experimental.

Outra fonte de preocupação é o risco da transmissão de doenças dos animais para os humanos. Essa questão também foi minimizada pela engenharia genética e abriu a possibilidade de realizar o procedimento de forma mais segura.

— Precisa haver um controle grande para impedir que determinadas infeções, principalmente virais, possam ser transmitidas em um transplante como esse. Por isso que esses porcos são criados de forma extremamente rigorosa, em laboratórios específicos, com todas essas alterações — explica o cirurgião do aparelho digestivo Ben-Hur Ferraz Neto, professor livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP).

O porco utilizado no transplante foi fornecido pela Revivicor, uma empresa de medicina regenerativa com sede em Blacksburg, Virgínia. Atualmente, o porco é o animal mais estudado para a realização de xenotransplantes em humanos. Seus órgãos são semelhantes aos de humanos e eles tem algumas vantagens sobre os primatas: são mais fáceis de criar, atingem a maturação mais rapidamente e chegam ao tamanho humano adulto em seis meses. Além disso, válvulas cardíacas de porco já são transplantadas em humanos rotineiramente. A pele do porco também tem sido usada como enxerto temporário para pacientes queimados e as células do pâncreas também já foram usadas em alguns pacientes com diabetes.

Por isso, especialistas esperam que procedimentos como esse inaugurem uma nova era na medicina, quando os órgãos não serão mais escassos para os mais de 48 mil brasileiros que aguardam na fila de transplantes.

— Apesar das campanhas, há poucos doadores e muitos pacientes morrem diariamente, no Brasil e no mundo, esperando um transplante. Para pacientes com insuficiência cardíaca, o transplante é indicado quando não há nenhum outro tipo de medicação ou conduta. Se isso der certo, e esperamos que sim, o transplante pode ser tornar uma cirurgia eletiva. Isso é um sonho porque pode diminuir muito a mortalidade — ressalta o cardiologista Roberto Kalil.

Tempo e paciência

Para que esse sonho se torne realidade e os xenotransplantes possam ser realizados de forma rotineira falta apenas tempo. É necessário acompanhar esse paciente no longo prazo para garantir que a cirurgia é segura e eficaz. Além disso, estudos clínicos precisam incluir um maior número de pacientes para analisar o quão bem os órgãos de animais funcionam na população, não apenas em operações pontuais, assim como para aprimorar a técnica. Apesar desses desafios, os médicos estão confiantes.

— Eu acredito bastante que poderemos contar com esse tipo de transplante, começando pelo de rim e seguido de vários órgãos, nas próximas décadas, sem dúvida nenhuma — afirma o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto.

No Brasil, uma equipe de pesquisa liderada pelo professor da USP Silvano Raia, cirurgião pioneiro nos transplantes de fígado no país, está dedicada ao estudo de xenotransplantes. Enquanto o futuro não chega, a esperança para aqueles que aguardam um órgão permanece com a generosidade das pessoas.

Bem-estar e exploração animal

Apesar de todos os avanços, testar órgãos de animais em humanos levanta muitas questões sobre o bem-estar e a exploração animal. O PETA, grupo dedicado à defesa dos direitos dos animais, afirma que “os animais são indivíduos complexos e inteligentes. […]  A única coisa certa a fazer – e a opção mais saudável para os humanos – é deixar os porcos e outros seres vivos e sentimentais em paz e buscar curas usando a ciência moderna. E para pacientes que precisam desesperadamente de órgãos, as leis de consentimento presumido tornariam os órgãos humanos muito mais disponíveis”.

História recente da medicina

O transplante de órgãos é algo recente na história da medicina. Em 1954 foi realizado o primeiro transplante renal intervivos bem-sucedido no Hospital Brigham, ligado à Universidade Harvard. Em 1962 a mesma equipe realizou o primeiro transplante de rim bem-sucedido de um doador falecido. O primeiro transplante de coração no mundo aconteceu em 1967, na África do Sul, há apenas 54 anos.

No Brasil, o procedimento ocorreu no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, apenas cinco meses depois, sob o comando das equipes do professor Euryclides de Jesus Zerbini e do professor Luiz Venere Décourt. Esse também foi o primeiro transplante cardíaco da América do Sul e esteve entre as cinco primeiras do mundo.

— Se formos contar a realização clínica rotineira, é mais recente ainda. O transplante de fígado, por exemplo, deixou de ser experimental nos EUA em 1984. A evolução do transplante foi muito grande nas últimas duas décadas, especialmente no Brasil — diz Ferraz Neto.

Além dos xenotransplantes, a produção de órgãos em laboratório a partir de material genético do paciente é outra possibilidade forte de avanço para a área nas próximas décadas.

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