Transplantes de órgãos no Brasil ganham fôlego e se tornam mais eficazes com novas técnicas

BRASÍLIA e SÃO PAULO — Depois de apenas um mês à espera de um transplante de fígado, a pensionista Vivian Lima de Araújo foi para topo da fila.
— Recebi essa notícia maravilhosa, mas eu sabia que não iria aguentar muito mais tempo — conta.
Aos 61 anos, Vivian, que mora em Itaboraí, a 45 km do Rio, precisava ser internada frequentemente por complicações da doença que a acometia, uma cirrose severa. Em 15 de novembro, quando seu telefone tocou com a notícia de que chegara a sua vez, ela foi comunicada que ainda não era a primeira da fila. Esse lugar era do pequeno Davi Moraes, de apenas 6 anos de idade. Mesmo assim, ela receberia um novo fígado — ou parte dele. Ambos foram beneficiados graças a uma decisão da equipe do cirurgião Lúcio Pacheco, coordenador do transplante de fígado dos Hospitais da Rede D’Or, que optou por dividir o órgão doado e salvar duas vidas, em vez de uma.
— Nasci de novo, agora é vida nova — comemora Vivian.
Pacheco explica que o nome técnico do procedimento é split liver, algo como “fígado dividido”, em tradução livre.
— Esse método dá mais trabalho, mas, quando conseguimos fazer isso com excelência técnica, é possível ajudar duas pessoas na fila do transplante a partir de um único fígado — explica o cirurgião.
Esse tipo de cirurgia é raro no Brasil devido à sua complexidade. Graças aos avanços da tecnologia e os conhecimentos científicos, deverá ocorrer mais vezes. São necessárias três equipes, uma para captar e dividir o órgão, e as outras duas prontas para realizar o transplante. Nesse caso específico, os dois pacientes eram de Pacheco. O feito envolveu dois hospitais da Rede D’Or e mais de 24 profissionais, dos quais cinco cirurgiões. Um foi responsável por preparar o órgão e dois estavam presentes em cada transplante realizado.
Para o cirurgião de transplantes Ben-Hur Ferraz Neto, livre-docente pela Universidade de São Paulo e uma das maiores referências na área, a ausência de um protocolo para determinar os parâmetros desse tipo de procedimento no país também contribui para que ele não aconteça de forma frequente.
— Fora do Brasil existe uma política de split liver que determina que, sempre que o doador tiver critérios ideais, a divisão deve ser feita. Caso não seja, é preciso justificar por que não foi feito — diz Ferraz Neto.
Embora possa ser dividido, há um volume mínimo de fígado que a pessoa precisa receber para ficar viva. Isso varia de acordo com o peso do receptor. Segundo Pacheco, o mínimo é 0,8% do peso corporal. Por exemplo, uma pessoa que pesa 100 kg tem que receber 800g de fígado. Normalmente, um paciente adulto recebe cerca de 60% do fígado, enquanto um paciente pediátrico fica com os outros 40%. As características do doador também são fundamentais: ele precisa ser jovem e sem problemas de gordura no fígado.
Como pontuado por Pacheco, o risco de complicações de transplantes feito com o fígado dividido também é maior. As principais são sangramento da área do órgão que foi cortada e vazamento de bile, uma secreção hepática.
Além de coordenar a equipe de transplante de fígado há 25 anos, Pacheco é paciente. O médico conta que em janeiro precisou fazer o transplante.
— Sempre defendi muito o transplante e, depois que passei por isso, fiquei feliz de sempre ter brigado pela doação de órgãos. Só estou vivo porque uma família disse “sim, eu quero doar”. E, além da minha vida, eles salvaram a de quem recebeu os rins, o coração etc. — comemora o cirurgião.
A área de transplantes está entre as que mais evoluíram na medicina. Desde a década de 50, com a consolidação das técnicas cirúrgicas, houve progressos nos métodos operatórios, os equipamentos foram refinados, a coleta de órgãos melhorou, os remédios antirrejeição ficaram mais refinados e com menos efeitos colaterais. Hoje, para se ter uma ideia, a chance de sucesso do transplante de fígado e rim (que estão entre os mais bem-sucedidos) é de em torno de 90%. Há 30 anos não passavam de 70% e 60%, respectivamente.
Covid complica a fila
Entre o diagnóstico e a alta de Covid-19, o analista de sistemas Henrique Nascimento, 31 anos, viveu um semestre de intensos cuidados, em meio à intubação, à Oxigenação por Membrana Extracorpórea (ECMO) e à traqueostomia. Diante da gravidade do quadro, ele passou a liderar a fila para um transplante duplo de pulmão. Mas o procedimento precisou ser adiado por uma infecção bacteriana e pela condição debilitada.
— Pedia a Deus que viesse o pulmão certo. Chegou o primeiro, foi para uma pessoa. Chegou o segundo, foi para outra pessoa. E aí veio o meu.
É assim que Nascimento relembra as semanas antes de passar por um transplante duplo de pulmões, há três meses, por causa da infecção:
— Hoje, vejo a vida (de forma) totalmente diferente. Quero abraçar meu irmão, meus pais, minha esposa, meu filho, meus sogros. Quero estar com meus amigos, minha banda… Por um tempo, pensei que isso nunca mais fosse acontecer — lembra ele, que, antes da Covid, era saudável.
Dados do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) mostram que o número de procedimentos disparou 37% de janeiro a março deste ano — puxado pelo salto de 90% do número de transplantes de córnea, paralisados durante parte da pandemia — em comparação ao mesmo período de 2020.
O nefrologista Geraldo Bezerra Júnior, professor do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza, Fundação Edson Queiroz (Unifor), avalia que o aumento na fila era previsível pela própria Covid, uma doença sistêmica que afeta vários órgãos. Além dos pulmões, o paciente pode ter sequelas nos rins e, inclusive, precisar de um transplante.
As estatísticas dão sinais de recuperação em relação ao ano passado, mas ainda não alcançam o patamar de antes da Covid. Com 20.292 transplantes nos três primeiros trimestres de 2019, houve queda de 16,8% neste ano. Há exceção para o de medula óssea, que ficou em estabilidade — aumento de 0,8% — na comparação entre os dois períodos.
Na fila de transplante, dados do RBT até setembro deste ano contabilizam 48,3 mil pessoas. Em 2019, mesmo período, eram 36,4 mil.
— A ideia era que, em janeiro de 2021, houvesse aumento progressivo da doação e recuperação dos transplantes, pelo menos igual a 2019. Mas o que aconteceu? A segunda onda da Covid novamente acarretou a queda nas doações e nos transplantes — explica o presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), José Huygens Parente Garcia. — A partir de agosto, já começou a aumentar a doação e os transplantes, principalmente pela vacinação, pela diminuição da mortalidade da Covid… Então, a gente espera, pelo menos, atingir o índice de 2020 até o final do ano e, para 2022, a marca de 2019.
Mais impactado
De acordo com a médica Daniela Salomão, responsável técnica pelo setor de transplantes da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), na pandemia o transplante de córnea foi o mais impactado. Como não é considerada uma cirurgia de risco de morte, acabou, em grande parte dos casos, sendo adiada.
Agora, o desafio é aumentar o diagnóstico e as cirurgias de quem está na lista de espera. Na avaliação da médica, com esse novo cenário será possível ter uma ideia melhor dos reflexos nos transplantes.
— Com as pessoas buscando as unidades hospitalares e se inserindo no sistema, talvez a gente veja um número de inscrição acima da média habitual no transplante, mas não porque houve uma piora da saúde da população ou algo parecido, mas porque isso ficou represado — avalia Salomão.