Uma dor sem fim

Taken with an old Helios 58mm

Todo mundo sente dor. É um sofrimento necessário para nos proteger. Imaginem se não tivéssemos esse forte alarme para algum ferimento no corpo. Ou esse limite para levar o braço às costas. É terrível a situação de algumas raras pessoas que não apresentam a sensação de dor (analgesia congênita). Geralmente não vivem muito, acometidos de fraturas, ferimentos e sangramentos incontrolados. A dor é uma sensação corporal de grande importância para a nossa sobrevivência, pois.

Só que em vários casos ela ultrapassa as expectativas, e torna-se crônica: hipersensibilidade à dor, uma dor sem fim. Isso acontece quando há lesões de nervos periféricos causadas por desvios da coluna vertebral que comprimem algum nervo devagarinho. Ou por traumatismos que esmagam um desses nervos. Também o câncer, doenças das articulações, diabetes… Calcula-se que um terço da humanidade já tenha passado por períodos de dor crônica ao longo da vida.

A grande pergunta é qual o mecanismo para essa dor persistente e tão sofrida, sem que haja uma lesão grave nos nervos que conduzem essa modalidade sensorial. A dor é diferente do tato, levadas ambas as sensações do corpo à medula espinhal por fibras nervosas distintas embutidas nos mesmos nervos. Como chegam pelo mesmo caminho, como é que não se confundem, normalmente? Como é que um simples toque na pele não causa dor? Isso ocorre porque há neurônios receptores diferentes no corpo, cada um com seu estímulo de preferência: calor, frio, tato… e dor. Além disso, há um filtro na medula espinhal, onde as fibras nervosas da dor se comunicam com neurônios que levarão (ou não) as informações ao cérebro, para as devidas providências. É aí que o tal filtro entra em ação. Trata-se de uma teia de proteínas e outras moléculas, que envolve como uma nuvem os pontos de comunicação entre esses neurônios da dor.

Supondo que essa teia misteriosa estaria na raiz do mecanismo da dor crônica, um grupo de pesquisadores canadenses bolou um modelo experimental desse tipo de dor em camundongos, realizando uma leve compressão em um dos ramos do nervo ciático, na pata posterior. Levinha, mas suficiente para causar desconforto doloroso nos animais, expresso em comportamentos de rápida retração da pata aos menores estímulos. Depois examinaram as teias perineuronais dentro da coluna dos bichinhos, na hipótese de que estivesse aí o segredo que abriria caminho para melhores tratamentos das dores crônicas.

Primeiro, descobriram que as teias moleculares estavam desorganizadas em volta dos neurônios da dor nos animais experimentais com dor crônica. Em segundo lugar, encontraram uma proliferação de células pequenininhas que fazem parte do sistema imunitário cerebral, chamadas coletivamente de microglia. Mexendo com a proliferação dessas células, descobriram que são elas as culpadas pela disrupção nos filtros da dor. Confirmaram a hipótese realizando outros experimentos de manipulação da microglia e das teias, e avaliando a resposta dolorosa dos animais. O tiro mais certeiro foi o registro da atividade de sinalização dos neurônios da dor para o cérebro, muito aumentada nos animais experimentais. A corrente fechou: compressão do nervo periférico — aumento dos sinais de dor — proliferação enlouquecida das células imunitárias da medula espinhal — desorganização do filtro molecular dos neurônios da dor — aumento da sinalização elétrica em direção ao cérebro. Resultado: uma dor sem fim.

A importância dessa descoberta ressalta a necessidade de colocar como alvo terapêutico não apenas o local de compressão dos nervos — a coluna vertebral deslocada, por exemplo – mas também as células inflamatórias que proliferam na medula causando a desorganização dos filtros naturais de passagem dos estímulos dolorosos. O sistema nervoso é como o poeta definido por Fernando Pessoa: “finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”…

Fonte: O Globo

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