Entenda como funciona o complexo sistema de transplante de órgão no Brasil

A notícia de que o apresentador Fausto Silva tinha insuficiência cardíaca e precisaria de um transplante de coração comoveu o Brasil em agosto. Faustão ficou internado durante mais de 20 dias no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, até conseguir o órgão de que precisava. A gravidade de seu caso permitiu que ele tivesse prioridade para o transplante, cuja rapidez surpreendeu muita gente.

Foi o final feliz de um drama vivido por milhares de brasileiros. Longe dos holofotes, eles esperam por um órgão com urgência, sem saber quando ele vai aparecer.

Carla Cristina Martins dos Santos sabe bem o que é essa ansiedade. Em abril de 2018, ela estava fazendo uma viagem de carro no Paraná, onde vive, quando notou um inchaço na perna esquerda. Achou que era cansaço pelo trajeto de 250 quilômetros entre as cidades de Reserva e Campina Grande do Sul; por precaução, pediu ao primo que assumisse o volante.

No dia seguinte, enquanto trabalhava na padaria onde era balconista, o olho esquerdo também começou a inchar. Foi ao pronto-socorro e fez exames. Retornou ao hospital três dias depois, preocupada com os sintomas, que haviam reaparecido.

Levou um susto ao ouvir do nefrologista que apenas 5% de seus rins estavam funcionando. Ficou duas semanas hospitalizada. A biópsia revelou que Carla tinha nefropatia por IgA, também conhecida como doença de Berger, já em estágio avançado. Voltou para casa, onde teve princípio de derrame dias depois. Os rins haviam parado de vez — e ela foi levada às pressas ao hospital novamente.

“Tive muita hemorragia, apagava muito. Uma hora eu voltei e vi minha mãe, meu irmão e meu filho. Desconfiei que tinha alguma coisa errada, porque criança não podia entrar [na UTI]. Eles estavam chorando. Depois me contaram que os médicos tinham me desenganado e que, provavelmente, eu não ia passar daquela noite”, recorda. Mas ela sobreviveu.

Santos não foi a primeira pessoa da família a ter um problema renal. Anos antes, um tio dela havia perdido os rins, e a esposa doou um para ele. Mas a balconista não teve a mesma sorte com seus familiares. Ficou mais de três meses internada; passou o aniversário de 28 anos no hospital e se manteve viva com as sessões de hemodiálise.

Nesse tempo, fez amizade com outras pacientes. Sentia o coração apertado cada vez que uma delas morria. Além do medo de não conseguir esperar sua vez de receber um transplante, sofria por não participar da rotina do filho de 4 anos, e por imaginar que poderia faltar para ele.

A paranaense concorreu a um rim três vezes, mas era incompatível com os órgãos. Em outubro de 2020, o telefone tocou pela quarta vez. Desanimada, Carla não atendeu a ligação. Na segunda chamada, ouviu que tinha 15 minutos para estar no hospital; caso contrário, o rim passaria para outra pessoa. Como morava perto, chegou a tempo. “Chorei de medo e de felicidade. Esse rim significa ter minha vida de novo.” Em 2023, ela realizou o sonho antigo de ser mãe de uma menina.

O Brasil é o segundo país que mais faz transplantes no mundo, atrás apenas dos EUA. Até agosto de 2023, foram feitos 18.461 procedimentos por aqui — em todo o ano passado, o total registrado foi de 16.848 cirurgias.
— Fonte: Ministério da Saúde

O nefrologista Rodrigo Belila, que acompanha Carla, convive com histórias com a dela todos os dias. A equipe do Hospital Angelina Caron, em Campina Grande do Sul, realiza cerca de 170 transplantes renais por ano. O número é alto em comparação aos demais órgãos, inclusive em centros de outras partes do país.

Tem explicação: como são dois rins, os doadores falecidos beneficiam duas pessoas da lista, e ainda há a possibilidade da doação em vida. Além disso, em muitos casos, o suporte dialítico permite manter os pacientes vivos até o órgão chegar. “A diálise ajuda o paciente a sobreviver, mas o transplante o ajuda a viver de novo”, compara Belila.

Um sistema complexo

 

Mais de 65 mil brasileiros estão à espera de órgãos e tecidos, segundo o Ministério da Saúde. E muitos não conseguem esperar o suficiente. Entre janeiro e junho de 2023, 1.313 pessoas que aguardavam um transplante morreram, conforme o Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), feito pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

O Brasil é o segundo país que mais faz transplantes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Até agosto, foram feitos 18.461 procedimentos por aqui — em todo o ano de 2022, o total registrado foi de 16.848 cirurgias. Os números foram divulgados pelo Ministério da Saúde no fim de setembro.

O país também bateu recorde no número de doadores efetivos no primeiro semestre deste ano: foram contabilizados 1,9 mil, o que possibilitou a realização de 4.377 transplantes no período, número 16,2% maior do que em 2022. De acordo com a pasta, com essa tendência, a expectativa é fechar este ano com um recorde inédito.

A regulamentação, o controle e o monitoramento do processo de doação e transplante de órgãos por aqui são feitos pelo Sistema Nacional de Transplantes (STN), gerenciado pelo Ministério da Saúde. A lista é única para os pacientes tanto de hospitais públicos quanto dos privados, de todas as regiões do país. “O SUS faz todo esse processo. E todas as etapas de doação e captação estão previstas nas normativas do Ministério da Saúde e são financiadas por ele”, explica a médica Daniela Salomão, coordenadora-geral do SNT.

Tudo começa quando uma lesão neurológica grave, como acidente vascular cerebral ou trauma cranioencefálico, é identificada. Caso o indivíduo não responda mais a nenhum recurso terapêutico, é aberto o protocolo de morte encefálica, que envolve dois ou três médicos que realizam todos os testes e exames. Determinada a morte, uma equipe de assistência hospitalar aborda a família sobre a possibilidade de doação. Se concordar, ela assina o consentimento.

Os próximos passos precisam ser rápidos. O potencial doador continua sendo cuidado na terapia intensiva, para que os órgãos sejam mantidos em boas condições, enquanto o hospital notifica a Central Estadual de Transplantes e começam a ser realizados testes de compatibilidade com potenciais receptores. Um sistema informatizado gera uma lista de onde são atendidos os possíveis receptores e, com isso, acontece o contato com os hospitais. Ao mesmo tempo, a equipe de transplante, junto com a central, toma as providências para a retirada dos órgãos.

Quando o hospital em que o doador está internado não tem autorização para fazer a cirurgia, são acionados médicos de fora. Terminada essa etapa, os órgãos entram em suas respectivas listas, mas não ficam necessariamente com quem chega primeiro. Além da ordem cronológica de cadastro, a compatibilidade é analisada a partir de critérios técnicos, como o tipo sanguíneo. Os casos de maior gravidade têm prioridade e o órgão só sai do estado quando não há receptores compatíveis. O mesmo acontece quando o estado não realiza aquele transplante.

Mas, antes de tudo — inclusive da autorização familiar — as condições clínicas do potencial doador são avaliadas. Uma delas é a idade, que varia de acordo com o órgão. Determinadas lesões e alterações morfológicas, comorbidades, infecções e outros problemas de saúde também são levados em consideração. Só que não necessariamente descartam o doador.

“Os órgãos têm suas peculiaridades de aproveitamento, mesmo em pacientes com alguma comorbidade”, pontua o médico José Huygens Garcia, membro do conselho consultivo da ABTO. O fato de certos órgãos estarem em bom estado e poderem ser transplantados, porém, não é garantia de sucesso. Há outros empecilhos no caminho.

O desafio da distância

 

Nessa corrida contra o relógio, cada segundo conta. Isso porque os órgãos têm o chamado tempo de isquemia, em que podem ficar fora do corpo sem circulação sanguínea. Coração e pulmão são os mais sensíveis e devem ser transplantados em até quatro horas depois de retirados do doador. No caso dos rins, o ideal é que a cirurgia seja feita em, no máximo, 24 horas. Para salvar vidas, no entanto, às vezes os médicos realizam transplantes num tempo maior.

Há casos, por exemplo, em que o coração é transplantado após as recomendáveis quatro horas. Segundo o cirurgião cardiovascular Ronaldo Honorato, do Núcleo de Transplantes do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas de São Paulo, entre 2013 e 2023, o Incor realizou 509 transplantes cardíacos. Desses, 103 foram com mais de quatro horas de isquemia e o resultado foi satisfatório: 62% dos pacientes sobreviveram e 40% deles ficaram vivos por mais de cinco anos. “É um desempenho muito bom, levando em conta que o órgão foi removido e ficou mais de quatro horas fora do organismo”, avalia Honorato.

Os órgãos não têm hora para aparecer e tudo precisa estar pronto para levá-los de um destino a outro. O Ministério da Saúde tem parceria com companhias aéreas para fazer o transporte. “Mas nem todas as cidades têm aeroportos, uma logística comercial que atenda no tempo oportuno”, pondera Daniela Salomão. Por isso, a pasta também atua junto à Força Aérea Brasileira (FAB), que atende o Ministério sob demanda. Ainda assim, não há margem para atrasos.

Órgãos têm o chamado tempo de isquemia, em que podem ficar fora do corpo sem circulação sanguínea — Foto: Getty Images
Órgãos têm o chamado tempo de isquemia, em que podem ficar fora do corpo sem circulação sanguínea — Foto: Getty Images

Para evitá-los, há outras iniciativas em vista. O InCor se uniu à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) a fim de desenvolver um algoritmo matemático que aplica técnicas de engenharia à medicina. O aplicativo, que ainda não tem data para ser lançado, irá calcular a melhor rota e o meio de transporte mais rápido em cada etapa da viagem de um órgão. A ideia é usar a expertise da logística, que está acostumada a cumprir prazos e lidar com produtos sensíveis, na área da saúde.

O algoritmo do roteirizador multimodal não seguirá uma logística óbvia. “Por que não, em algumas regiões, passar também pelo transporte fluvial? Onde vale a pena trocar de rodoviário para ferroviário, aéreo ou marítimo? A ideia é trazer esse conhecimento para os transplantes”, explica o engenheiro Daniel Mota, professor de engenharia de produção da Poli que está desenvolvendo o projeto com Ronaldo Honorato. “O arranjo logístico tem que ser mais eficiente, mas não podemos deixar de considerar os custos. Se a gente for econômico, salva mais vidas.”

Tecnologia avançada

 

Os custos dos transplantes, principalmente em regiões remotas, não causam preocupação só no Brasil. Ao levar programas de cirurgia para cidades rurais nos Estados Unidos, o cirurgião cardíaco Paul Robison ficava impressionado com o montante gasto. Ele, que já foi cirurgião-chefe do laboratório de coração artificial da Universidade de Utah, via o quão caro era enviar uma equipe cirúrgica inteira para hospitais pequenos de cidades afastadas, lidar com o despreparo dos profissionais locais e os imprevistos das viagens.

Hoje, Robinson trabalha com captação de órgãos na empresa XVIVO, que conta com uma equipe de explante e outra de implante, ambas compostas por cirurgiões experientes que, como ele, tiram de letra desafios e contratempos.

Mas a tecnologia também é utilizada em outras frentes. A XVIVO criou um ambiente de inteligência artificial chamado XPS System, no qual pulmões que não estejam 100% bons podem ser tratados fora do corpo. “Eles estarão, na verdade, em um ventilador e serão perfundidos por uma máquina. Podem ser tratados, melhorados e implantados depois de apenas algumas horas, para garantir que possam ser usados”, explica Robison a GALILEU. Trata-se de um dispositivo que faz o órgão funcionar como se estivesse no organismo do doador vivo. Assim, seu “prazo de validade” aumenta.

Para o coração, uma técnica semelhante fez crescer o número de transplantes cardíacos no St. Vincent’s Hospital Sydney, na Austrália. Conhecida como Donation After Cardiac Death, ou DCD Hearts, ela reanima órgãos que já pararam de bater. Isso é possível graças a uma máquina de perfusão chamada Heart in a Box (“Coração em uma Caixa”), que “reinicia” o órgão. O sistema fornece oxigênio, nutrientes e um fluido que o mantém aquecido e oxigenado até a cirurgia.

Outra realidade são os chamados xenotransplantes, que envolvem órgãos de espécies diferentes. “Já usamos, por exemplo, válvulas cardíacas de porcos para fazer cirurgias de válvulas cardíacas em humanos”, informa Paul. E há cada vez mais novidades nesse sentido.

Um coração suíno geneticamente modificado em humano foi colocado em Lawrence Faucette, um veterano da Marinha dos EUA de 58 anos, por médicos da Universidade de Maryland. Por ter uma doença cardíaca em estágio terminal, ele foi considerado inelegível para um transplante de coração tradicional. Essa foi a segunda cirurgia do tipo; na primeira, o paciente sobreviveu por cerca de dois meses.

“Os órgãos vão para debaixo da terra, não vão servir para nada. Que isso traga uma ressignificação até do próprio processo da vida”
— Ronaldo Honorato, cirurgião cardiovascular do InCor, do Hospital das Clínicas de São Paulo

No Brasil, centros de pesquisa também buscam soluções para reduzir a perda dos órgãos e fazê-los durar mais. Uma delas está em desenvolvimento na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): um recipiente para substituir as caixas térmicas de EPS, um tipo comum de isopor, usadas no transporte.

“A embalagem atual é aquela que compramos no supermercado, que a gente coloca gelo e leva. Agora estamos produzindo uma específica para o transporte de material biológico, junto com a indústria. Não vai usar gelo e é rastreável”, conta Bartira de Aguiar Roza, professora de enfermagem na Unifesp. Financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, o projeto ainda está em processo de patente.

Capacitar é preciso

 

Não são apenas os órgãos que têm de chegar ao hospital o mais rápido possível. A pressa é a mesma para pessoas que moram em regiões onde não há transplantes. “O que temos feito é estimular os estados que ainda não têm serviços de transplantes a começarem a desenvolver essa habilidade, porque dessa forma a gente evita ficar tão dependente de logística em determinadas regiões”, detalha a coordenadora-geral do SNT.

Bartira, que atualmente presta assessoria na área de doação e transplantes para a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), diz que, na América Latina e no Caribe, o Brasil é destaque, ao lado de países como Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia. Mas, apesar das vantagens do SUS, como sua boa capilaridade, os resultados ainda podem melhorar. A solução, para a especialista, é investir em capacitações nacionais, para que diminuam as recusas de órgãos em razão da distância.

Uma iniciativa de destaque é o projeto Transplantes Sem Fronteiras. A equipe faz transplantes de fígado, pâncreas e rins em cidades com menos recursos para esses procedimentos, como as capitais Rio Branco, Goiânia e Manaus, e municípios do interior.

“A gente sempre via profissionais muito interessados, inclinados a fazer transplantes, mas que muitas vezes não podem ficar um tempo fora para fazer a capacitação”, explica o médico cirurgião Marcelo Perosa, coordenador do projeto. Em 20 anos de trabalho, foram feitos mais de 770 procedimentos.

Nas mãos das famílias

 

Uma das causas de mortes na lista de espera é a gravidade dos pacientes que entram nela. Mesmo tendo prioridade, alguns não conseguem aguardar. Por isso, não adianta haver equipes que atendam em todas as regiões do país e o transporte funcionar da maneira mais eficiente possível se não houver órgãos. “Temos mais pacientes do que doações, uma realidade no mundo inteiro. A demanda é maior do que a oferta”, resume Daniela Salomão.

Atuais embalagens usadas para transporte de órgãos são caixas térmicas de isopor — Foto: Getty Images
Atuais embalagens usadas para transporte de órgãos são caixas térmicas de isopor — Foto: Getty Images

Uma das causas é a recusa dos familiares. Segundo a ABTO, no primeiro semestre de 2023, 49% dos parentes não autorizaram a doação. Por trás dessas recusas podem estar questões culturais, religiosas, dúvidas quanto à lisura do processo e preocupações com a imagem do corpo após a retirada dos órgãos.

As campanhas de informação não são suficientes para acabar com esses receios. “É preciso investir em educação. Isso a gente faz na escola, ao se aproximar das crianças, mostrando que é um processo seguro”, sugere Roza. Para os adultos, Ronaldo Honorato propõe outra reflexão. “Os órgãos vão para debaixo da terra, não vão servir para nada. Que isso traga uma ressignificação até do próprio processo da vida.”

Fonte: Revista Galileu Saúde // Por Texto: Sibele Oliveira | Edição: Luiza Monteiro

 

Comments are closed.

This website uses cookies to improve your experience. We'll assume you're ok with this, but you can opt-out if you wish. Accept Read More

Privacy & Cookies Policy