A volta da pólio

Semana passada, noticiou-se um caso de pólio no estado de Nova York, nos EUA, causado por um vírus “vacinal”, ou derivado de vacina. Antes de darmos atenção a teorias conspiratórias ou achar que pessoas vacinadas podem transmitir pólio, convém entender o que é um vírus derivado de vacina, como ele aparece e por que consegue causar doença.

Existem dois tipos de vacina para pólio: a inativada, de vírus “morto”, incapaz de se reproduzir, e a vacina de vírus “vivo”, enfraquecido. Cada uma tem vantagens e desvantagens. A inativada é mais segura, protegendo da doença, mas é menos eficiente em proteger de infecção (a pessoa vacinada ainda pode ser contaminada, mas não fica doente). A oral, atenuada, provoca uma imunidade mais abrangente, protegendo tanto da doença quanto da infecção. Seu vírus “vivo” é capaz de se multiplicar no intestino e pode sair nas fezes, chegando aos esgotos.

Em países de saneamento básico precário, isto pode até ser benéfico, pois o vírus enfraquecido, disseminado no ambiente, acaba chegando a populações mais carentes que não se vacinaram, imunizando essas pessoas. Mas esse benefício tem limite: se o vírus vacinal circular na natureza durante muito tempo – em geral mais de um ano – e encontrar uma população não vacinada, pode sofrer mutações e recuperar a capacidade de causar doença, deixando de ser um protetor dos não vacinados e tornando-se uma ameaça para eles.

Dos três tipos de vírus da pólio, o mais bem-sucedido nesse processo de reversão é o tipo 2. A melhor estratégia é combinar as duas vacinas. Nem sempre isso é possível, pois a vacina inativada é mais cara e, por ser injetável, tem uma logística mais complicada.

A atenuada é oral, mais barata e fácil de aplicar. O vírus tipo 2 foi considerado erradicado em 2015 e, desde 2016, diversos países retiraram-no da vacina oral, atenuada, e adotaram um esquema híbrido, começando o regime vacinal com a inativada e fazendo o reforço com a oral. Esse regime garante maior proteção e segurança.

No Brasil, as primeiras doses são feitas com vírus inativado, aos dois, quatro e seis meses de idade. Seguem-se então duas doses de reforço com a vacina oral, atenuada, aos 15 meses e, depois, aos quatro anos. Em populações com baixa cobertura e que usam vacina oral atenuada, há risco de o vírus vacinal disseminado no ambiente sofrer a reversão e causar doença.

Isso tem sido observado na África e no Oriente Médio, e agora também nos EUA. A explicação mais provável para isso, já que os EUA usam apenas a vacina inativada, é que a globalização e a baixa cobertura vacinal contribuíram para a entrada de vírus vacinal no país, vindo de um dos diversos países do mundo que usam vacina oral. O vírus encontrou uma população não vacinada e, depois de um tempo circulando, sofreu reversão e contaminou alguém não vacinado.

Cabe aos sistemas de saúde, portanto, evitar essas condições propícias, mantendo as coberturas vacinais altas. No Brasil, os números preocupam. De acordo com a Fiocruz, o ano de 2021 registrou apenas 67% de cobertura para as primeiras doses com a vacina inativada e só 52% para as doses de reforço. Nas regiões Norte e Nordeste, os números caem ainda mais, chegando a 44% para imunização completa com as cinco doses. O Brasil também não tem um bom sistema de vigilância, necessário para detectar rapidamente a circulação de vírus vacinal. Além disso, o vírus selvagem ainda é endêmico no Afeganistão e Paquistão e pode viajar.

Casos isolados como o detectado em Nova York servem de alerta para o mundo: não se pode descuidar das campanhas permanentes de imunização. Aqui no Brasil, temos vacinas e somos capazes de vacinar, mas pelo jeito preferimos brincar com a sorte.

Fonte: O Globo

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