Aumento trágico da mortalidade materna

No ano de 2021 morreram 2.787 gestantes no Brasil, um aumento de 41%. São mortes trágicas de mulheres jovens. Como cerca de 90% das mortes maternas são evitáveis, esse índice deveria estar caindo se houvesse um mínimo de organização na estrutura do sistema de saúde. Por isso, é com imensa tristeza que analiso esse aumento inaceitável que vai além da mortes, já que revela o cuidado que uma nação tem com suas mulheres.

Alguns podem dizer que a culpa foi da pandemia que causou mais esta tragédia, mas mesmo levando em consideração este tempo de exceção, este grupo de altíssimo risco deveria ter sido tratado com mais atenção, e por que não dizer, carinho.

A mortalidade materna é um coeficiente medido a cada 100 mil bebês nascidos vivos. A nossa já era muito alta, de 57 por 100 mil em 2019, e cresceu para 107 por 100 mil em 2021, retrocedendo aos índices da década de 1980 quando ainda não tínhamos o SUS. Para termos um exemplo de comparação, a Europa teve 13 por 100 mil. Nos Objetivos sustentáveis do Milênio havíamos firmado um compromisso de, em 2030 chegarmos a 30 óbitos por 100 mil, mas andamos para trás.

Este cenário desnuda o descompromisso e a incompetência das autoridades de saúde no cuidado com as mulheres, expressas em números. Temos experiência e conhecimento para enfrentar essa verdadeira epidemia irresponsável. Desde ações adequadas de planejamento familiar e pré-natal, organização da assistência ao parto, de modo que as gestantes de alto risco possam ter acesso a maternidades com equipamentos e recursos humanos adequados, leitos de UTI materna e referências organizadas, evitando a peregrinação caótica em busca de uma vaga hospitalar. Outra importante ação a ser fortalecida são os Comitês de Mortalidade Materna, que têm por missão analisar considerando uma tragédia, cada uma dessas mortes, identificar as falhas que a causaram para, assim, corrigi-las.

Porém, a solução definitiva passa pela necessidade de estruturar o PAISM (Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher) na atenção primária, criando uma Rede de Atenção Integral à saúde da mulher com centros especializados que dediquem metade de sua área a uma maternidade especializada em casos de maior risco. Aliás os locais e a capacidade de atendimento têm se reduzido cada vez mais: maternidades que historicamente salvaram tantas vidas na cidade de São Paulo, a mais rica da América Latina, sofrem por falta de recursos e por privatizações.

Na década de 1990, meu pai, Dr Pinotti, construiu um hospital, ao lado da Faculdade de Medicina da USP que deveria ser o Instituto da Mulher. Era o local correto para funcionar como referência nos casos de alto risco obstétrico e neonatal e para orientar a atenção primária na rede de saúde, isso criaria um entrosamento desejável com os órgãos de saúde estaduais e municipais e ampliaria a capacidade de atendimento do HC, em relação a câncer de útero, de mama, de ovário, endometriose, Aids, doenças sexualmente transmissíveis (DST) etc. Todas essas doenças, com taxas também altas de mortalidade, têm na atenção primária a necessidade e a possibilidade de ser atendidas com ações mais simples de detecção e diagnóstico, mas também precisam de um hospital de referência para as ações mais complexas de tratamento.

A implantação de um hospital de referência da mulher, que trate de todas essas ações mais complexas e oriente o PAISM, é a única forma de substituir “campanhas” (que servem só como penduricalhos de um sistema de saúde capenga) por uma estruturação permanente e eficiente desse sistema. Infelizmente este sonho de meu pai ainda não foi realizado, e no século XXI assistimos as mortes evitáveis de gestantes quase dobrarem em nosso país em apenas um ano.

Fonte: O Globo

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