Avanços na medicina permitem que bebês de 580g sobrevivam sem sequelas no Brasil

SÃO PAULO — Quando a médica Romy Schmidt Brock Zacharias, coordenadora da neonatologia do Hospital Israelita Albert Einstein, fazia residência, o nascimento de bebês com 28, 29 semanas de gestação era um grande acontecimento, que deixava todos em alerta. Hoje, passados 20 anos, o alarme ainda existe, mas para bebês com apenas 24 semanas. Os cuidados e tratamentos com prematuros evoluíram imensamente no período, permitindo que eles não só tenham mais chances de sobreviver mas também menos sequelas futuras.

— Até a década de 1970, 1980, os bebês prematuros com menos de um quilo dificilmente sobreviviam. Lógico que quanto mais prematuro, maior o desafio e a chance de alguma sequela. Mas a medicina evoluiu bastante em oferecer tratamento e cuidados mais adequados. Hoje, o limite seria 22 semanas, menor que isso por enquanto só na ficção científica, com úteros artificiais — explica Zacharias.

Com 24, 25 semanas de vida, a chance de o bebê sobreviver é de cerca de 50%. Há marcos importantes da prematuridade. Um deles é o peso: acima de 1 kg a chance aumenta bastante. Bebês com mais de 1,5 kg hoje já tem bastante segurança, o que acontece lá pelas 31 semanas.

Os problemas mais comuns ainda são os pulmonares, por isso os bebês podem ficar por um bom tempo dependendo de oxigênio. Há risco de sequelas neurológicas, como paralisia cerebral e atraso de desenvolvimento, e a retinopatia da prematuridade, que é uma má formação da retina.

Em neonatologia, o divisor de águas ocorreu na década de 1990, com o uso de surfactante exógeno. Essa solução existe nos pulmões com a função de manter os alvéolos pulmonares abertos e virou um medicamento essencial para permitir a ventilação dos pulmões imaturos. Junto com ele, surgiu a ventilação mecânica. A partir daí tudo foi se desenvolvendo.

Mais recentemente, os avanços se deram por meio de drogas específicas para tratamento das patologias que podem surgir nos pequenos, como a retinopatia, ou substituindo a cirurgia nos corações para fechamento de um canal que às vezes não tem tempo de se fechar. Além das drogas, houve avanços nos cuidados como nutrições endovenosas melhores com macro e micro nutrientes que permitem nutrição adequada e ventiladores mais modernos.

— Chegamos a 22 semanas, que é o limite, e agora o grande desafio é fazer com que sobrevivam bem. As equipes médicas são muito especializadas, de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogas e fonoaudiólogas, todos focados só nesses bebês, respeitando todas as suas peculiaridades — afirma Zacharias, destacando a importância de protocolos personalizados.

Segundo a neonatologista, o pulo do gato para evitar sequelas neurológicas é a monitorização, que está cada vez mais fina para captar a oxigenação e as funções cerebrais do prematuro.

A ciência vem buscando compreender melhor o que acontece com os prematuros, em especial com o desenvolvimento cerebral deles. Segundo o neurocientista Roberto Lent, pesquisadores britânicos do King’s College de Londres realizaram um estudo com 151 crianças nascidas antes de 33 semanas de gestação, com exames de imagem e avaliações aos 4 anos.

“Tudo funcionava normalmente na maioria delas, exceto em um aspecto: no lado direito do cérebro, uma via chamada feixe uncinado apresentava em muitas crianças sinais de alteração da microestrutura, associados a indicadores de desregulação emocional, preditores de transtornos de ansiedade”, diz Lent em coluna publicada no GLOBO na sexta-feira.

O neurocientista reforça que isso não significa que os prematuros estejam condenados à ansiedade patológica. Apenas, “recomenda atenção ao desenvolvimento psicológico dos prematuros, para ajudá-los imediatamente se os transtornos de ansiedade aparecerem.”

Participação dos pais

Quando se fala de prematuridade, um dos aspectos mais importantes, na verdade, é como evitá-la. Daí a importância de um pré-natal adequado.

As principais causas do nascimento precoce são as doenças maternas: hipertensão arterial, diabetes gestacional, incompetência istmo cervical (o colo do útero abre antes do tempo), infecções não tratadas, ou gemelaridade, ou seja, gestação de mais de um bebê.

Do lado de fora da incubadora, estão pais que passam meses praticamente vivendo na UTI neonatal. A jornalista e escritora Thais Lazzeri, autora do livro “Quinhentos Gramas de vida — A luta dos bebês prematuros pela sobrevivência” (Editora Belas-Letras), que conta histórias de famílias de prematuros, conta a analogia mais comum: “é como sentar num jardim, esperar a grama crescer e torcer para que o melhor aconteça”.

Há pequenas, mas valiosas contribuições dos pais no processo. Os médicos estimulam o toque e, assim que o bebê está estável, o canguru (quando é colocado pele com pele no peito de mãe ou pai), que ajuda na regulação dos batimentos cardíacos e até na sua temperatura. As mães podem ordenhar leite e cada mililitro é importante.

Além da preocupação com a saúde, a chegada prematura quebra expectativas dos pais: o barrigão do fim da gestação, a presença e participação da família e amigos na chegada da criança e até a atenção com a mulher, que acaba de passar pelo parto. São rituais que acabam substituídos pelas conquistas na UTI, cada pequeno avanço do bebê rumo a alta, que ainda pode vir com home care ou cuidados específicos.

Na hora de ir embora para casa há alegria, mas também medo para famílias que vivem todo o turbilhão de altos e baixos do processo.

— Chega o grande dia e você está apavorado, teme que talvez seu filho precise voltar para o hospital. É impressionante o que esses pais conseguem, as barreiras que vencem e todos os anseios que vão acompanhá-los com o bebê em casa. Mas eles se saem muito bem, porque apesar do medo, é como se fosse um segundo nascimento, de uma vida que eles estavam ansiando por começar — afirma Lazzeri.

Nascido com 580g, Gustavo passou cinco meses na UTI neonatal

Pouco antes dos seis meses de gestação, um ultrassom mostrou que o colo do útero da bióloga Patrícia Rodrigues Pinto dos Reis estava dilatado. O acompanhamento passou a ser semanal e, quando o bebê estava com 24 semanas, a médica avisou que ele tinha parado de crescer. Uma semana depois veio a notícia: o mundo exterior seria melhor para ele e era preciso fazer a cesárea. No dia 23 de dezembro, Gustavo chegou, prematuro extremo, com 25 semanas, 28 cm e apenas 580 gramas.

Apesar dos pulmões imaturos, Patrícia conta que ele chorou. Rapidamente foi levado para a incubadora com o pai e ela ficou na sala de recuperação:

— Tinha uma mãe ao meu lado, ela, o marido e o bebê. Ela amentando e eu escutando tudo, sozinha, sem meu bebê. Ele foi muito sonhado, tinha tudo planejado, e aquilo era o contrário do que eu sempre esperei — lembra.

A primeira vez que o viu direito, com óculos, ficou em choque: era muito pequeno. Menos de 24h horas depois, chegou a pesar 460g. Na noite de Natal, foi praticamente desenganado por um intensivista. Mas Gustavo resistiu.

Pouco depois do Natal, Patrícia sentia dores na perna e foi ao pronto-socorro, por insistência de uma enfermeira neonatal. Tinha duas tromboses que levaram à descoberta de que é portadora de uma síndrome hematológica de coagulação, que foi a causa do parto precoce. Acabou na UTI com uma embolia pulmonar, mas também resistiu.

O bebê precisou de várias transfusões de sangue, passou por algumas intubações e três infecções, e até uma cirurgia para retirada de uma hérnia inguinal. A mãe chegava às 6h no hospital e saía 22h, numa jornada que durou 5 meses e 12 dias.

Gustavo saiu do hospital de ambulância num dia frio de junho, com as enfermeiras chorando. Estava com 4 quilos, mas ainda precisava de oxigênio. Patrícia, feliz e preocupada.

— A primeira noite foi uma loucura, o oxímetro apitava o tempo todo. Ele tinha que tomar 12 remédios. Mas a coisa só melhorou. O fato de estar em casa e receber aquele carinho ajudou muito. Até o dia que eu acordei e o oxigênio estava na testa: ele se deu alta — conta

Gustavo ainda faz fono e terapia ocupacional, “porque a parte sensorial da criança é alterada”. Tem coisas que só de encostar, provocam ânsia de vomito, como areia. Mas é só mais um obstáculo para o menino de temperamento forte superar, depois de tantos.

— Agora está lindo, sem sequela motora nem neurológica. Brinca, adora livro e bola. É uma criança normal, que vai ter uma vida normal. É um milagre.

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