Pesquisas colocam em xeque o consumo generalizado da aspirina

Nos Estados Unidos, há um ditado que diz: “Uma aspirina por dia mantém o médico longe” (An aspirin a day keeps the doctor away). Por muito tempo, isso pareceu verdade, especialmente entre pessoas com risco de doenças cardiovasculares. Porém, nos últimos anos, estudos demonstram que esse hábito pode fazer mais mal do que bem. Embora a versão infantil da pílula continue sendo indicada para prevenir a ocorrência de infartos e derrames em pessoas que já sofreram um evento do tipo, as pesquisas — e novas diretrizes baseadas nelas — não recomendam mais o uso amplo do medicamento como forma de proteger o coração.

“Sabemos que a aspirina não é uma panaceia como se pensava e pode, de fato, levar a mais eventos hemorrágicos em alguns pacientes. Por isso, trabalhamos com as clínicas para reduzir o uso do remédio entre pessoas para as quais pode não ser necessário”, diz Geoffrey Barnes, cardiologista da Universidade de Michigan. Ele é autor de um estudo publicado, na semana passada, na revista Jama Network Open, da Academia Norte-Americana de Medicina, feito com dados de mais de 6,7 mil indivíduos medicados para evitar a formação de tromboembolismo venoso — os coágulos sanguíneos.

Os pacientes do estudo usavam heparina, um anticoagulante injetável, para “afinar o sangue”. Porém, mesmo sem histórico de doença cardíaca, também recebiam uma aspirina. As clínicas foram orientadas a retirar o medicamento dos pacientes sem indicação (veja quadro). No período de acompanhamento, entre 2010 e 2019, a redução do uso foi de 46,6%. Ao mesmo tempo, o risco de complicações hemorrágicas decresceu 32,3%. “Quando começamos esse estudo, já havia um esforço dos médicos para diminuir o uso de aspirina, e nossas descobertas mostram que acelerar essa redução evita complicações hemorrágicas graves, o que, por sua vez, podem salvar a vida dos pacientes”, disse Barnes.

O cardiologista destaca que não está sugerindo que as pessoas parem de tomar o medicamento caso tenham recebido a recomendação médica. Além disso, na prevenção secundária — evitar novos eventos em quem já sofreu algum problema cardiovascular —, as diretrizes continuam as mesmas. “Para algumas pessoas, a aspirina pode salvar vidas. Muitos pacientes que têm histórico de acidente vascular cerebral isquêmico, ataque cardíaco ou um stent colocado no coração para melhorar o fluxo sanguíneo — assim como aqueles com histórico de doença cardiovascular — se beneficiam da medicação. O desafio surge quando algumas pessoas tomam aspirina sem histórico de doença cardiovascular e também um anticoagulante”, diz.

“O erro é achar que uma coisa funciona para todos. Com o passar das décadas, o uso regular da aspirina vem sendo reduzido em alguns grupos para prevenção primária. Se a pessoa tem de 45 a 60 anos, nunca infartou nem teve AVC e tem um risco baixo de doenças cardiovasculares, provavelmente não terá benefício do medicamento”, explica o cardiologista Carlos Rassi, chefe do Pronto Atendimento do Sírio-Libanês e professor da Universidade de Brasília (UnB). Rassi destaca que os médicos devem avaliar o risco cardiovascular versus o de hemorragias para recomendar ou não a aspirina como prevenção. “Se o risco cardiovascular é mais que 10% e o de sangramento é baixo, o remédio pode ser recomendado, mas sabendo que o benefício é pequeno”, diz o cardiologista do Sírio-Libanês. “Fora da faixa dos 45 aos 60 ou se há risco alto de sangramento, não é mais recomendado. Já a prevenção secundária, ou seja, evitar que novos eventos aconteçam, não está em debate, porque já está bem estabelecido que o paciente tem benefícios.”

Prevenção ampliada

Em 1904, cientistas conseguiram transformar o ácido salicílico encontrado naturalmente na casca do salgueiro e modificá-lo para ácido acetilsalicílico, reduzindo os efeitos colaterais associados ao uso da planta. Estava criada a aspirina. Além das propriedades anti-inflamatórias, também se observou que o medicamento aumentava o tempo de sangramento nos testes de coagulação. Já na década de 1970, estudos demonstraram que o medicamento evitava a formação de coágulos, e a versão infantil da droga (100mg) passou a ser indicada para prevenir doenças cardiovasculares.

“Se você olhar para trás, nas décadas de 1970 e 1980, quando muitos desses estudos originais foram feitos, os pacientes não estavam tomando estatinas para controlar o colesterol, e a pressão arterial não era tão bem controlada”, afirma Mark Ebell, pesquisador da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. Ele é coautor de um artigo que comparou dados de pacientes entre 1978 e 2002 a quatro estudos de larga escala realizados após 2005, quando as estatinas (usadas para reduzir o colesterol) passaram a ser mais difundidas.

Com melhores estratégias de prevenção — seja mudanças no estilo de vida ou a descoberta de medicamentos específicos e mais eficazes —, Ebell acredita que não há mais necessidade de indicar a aspirina para evitar doenças cardíacas e vasculares. No estudo, publicado em 2019, o pesquisador descobriu que, para 1 mil pacientes tratados com o medicamento por cinco anos, houve quatro eventos cardiovasculares a menos e sete grandes hemorragias. “Fiquei particularmente alarmado com o número de hemorragias cerebrais. Cerca de uma em cada 300 pessoas que tomaram aspirina por cinco anos teve uma hemorragia cerebral. Isso é um dano muito sério. Esse tipo de sangramento pode ser fatal. Pode ser incapacitante, certamente.”

Fonte: Correio Braziliense

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