Investir em inovação na área de saúde pode alavancar o desenvolvimento do país, afirmam cientistas

Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – A pandemia de COVID-19 evidenciou como investir em inovação na área de saúde pode ser estratégico para um país – tanto para assegurar o bem-estar da população como para gerar riqueza, empregos e desenvolvimento. E o desempenho brasileiro nesse aspecto ainda está muito longe do ideal, embora o país tenha um dos maiores mercados consumidores de saúde do mundo. A análise foi feita por participantes do seminário on-line “Desafios no Desenvolvimento de Fármacos e Biofármacos no Brasil”, realizado pela FAPESP no dia 1o de setembro.

O evento, que integra a série FAPESP COVID-19 Research Webinars, organizada em parceria com o Global Research Council (GRC), reuniu especialistas para tratar dos desafios, custos e incertezas do desenvolvimento de fármacos pelo complexo ecossistema brasileiro de pesquisa, que inclui universidades, centros de pesquisa, empresas farmacêuticas, startups, empresas especializadas em testes clínicos e hospitais.

“O Brasil é um dos maiores mercados para a indústria farmacêutica. Com essa base, deveríamos ter um potencial muito grande de desenvolver novos fármacos. Porém, essa não é a nossa realidade. Podemos, infelizmente, contar nos dedos de uma mão quantos fármacos foram desenvolvidos em nosso país desde a pesquisa fundamental até chegar ao mercado. Existe um conjunto de dificuldades que explica esse problema e é preciso ampliar o debate para solucionar esses entraves”, disse Luiz Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP, na abertura do seminário.

São problemas ligados à falta de integração no ecossistema de pesquisa, de planejamento do governo e de financiamento às empresas, afirmaram os especialistas. “Nos últimos anos, houve um progresso enorme em áreas como big data, genômica, métodos biológicos e biofísicos que impulsionam o desenvolvimento de fármacos. No entanto, não está ocorrendo a tradução de pesquisas iniciais promissoras em ensaios clínicos. O fato é que, no Brasil, temos feito muita triagem de potenciais moléculas e alvos e pouco desenvolvimento efetivo de candidatos a novos fármacos”, disse Glaucius Oliva, coordenador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP).

Como destacou Oliva, até que um novo medicamento seja comercializado, o composto candidato passa por um longo processo de pesquisa, desenvolvimento e regulação. São várias etapas que vão desde os testes in vitro, com células, passando por testes em animais e depois pelas diferentes fases de testes clínicos. Paralelamente, são conduzidos trabalhos voltados à otimização da molécula que se transformará em fármaco.

Todo esse processo tem um alto custo, pode demorar mais de 12 anos e muitas drogas em potencial são abandonadas no meio do caminho. “O desenvolvimento de um fármaco é a combinação de identificar um alvo molecular – enzimas e receptores de um organismo – e moléculas que possam travar o processo de uma determinada doença. Portanto, um fármaco não é apenas uma molécula muito potente, ela precisa chegar até o alvo. Isso quer dizer que precisa ser absorvida, ter solubilidade e outras características que vão além da potência e segurança [não ser tóxica]. Tudo isso determina a eficiência de um fármaco”, explicou Oliva.

De acordo com o pesquisador há, no entanto, um desequilíbrio na pesquisa entre as várias etapas que formam o processo de desenvolvimento de um fármaco. “Aqui no Brasil, estamos acostumados a medir a potência das moléculas na placa de Petri, mas precisamos lembrar que isso é apenas um dos parâmetros que precisam ser considerados em todo o processo de descoberta e desenvolvimento de fármacos.”

Para Oliva, a base da dificuldade em fazer avançar a pesquisa básica está na falta de profissionais qualificados e também na falta de interação entre os diferentes grupos que formam o ecossistema de inovação. “No Brasil, temos alguma vantagem competitiva por conta da variedade de produtos naturais disponíveis. Mas eu ainda quero ver o dia em que seja comum professores e alunos, após descobrirem uma molécula importante, abrirem uma startup, aguardarem ela amadurecer e montarem uma spin-off. É preciso essa maior interação para inovar”, afirmou.

É a economia

Outro ponto importante destacado pelos especialistas foi a necessidade de planejar a inovação como política econômica perene do Estado. “Se o Brasil mantivesse algumas trilhas positivas, não estaríamos na situação que estamos hoje [de baixo investimento em ciência, tecnologia e inovação]”, disse Glauco Arbix, coordenador do Observatório de Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) e da área de Humanidades do Centro de Inteligência Artificial (C4AI) – um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) constituído por FAPESP e IBM no Centro de Inovação da USP.

Para Arbix, embora o ano de 2020 tenha sido um dos mais caóticos, de uma maneira paradoxal, foi possível colocar publicamente o setor de saúde como estratégico para o Brasil.

“Isso pode ser visto a partir dos enormes déficits comerciais que temos, dado o baixo nível de inovação na indústria da saúde – seja farmoquímica ou de equipamentos. É só olhar os déficits do Sistema Único de Saúde [SUS] e o quanto o setor privado paga, por ser obrigado a importar equipamentos e insumos. A cada R$ 100 que o SUS despende, R$ 60 estão relacionados à importação. Isso significa um custo social importante para o país”, afirmou Arbix.

De fato, estudos baseados em dados do SUS mostram que o sistema produtivo tecnológico de saúde saltou de uma importação de US$ 5 bilhões (2004), quando o sistema foi finalmente universalizado, para US$ 12 bilhões (2019) em fármacos, equipamentos de proteção individual e medicamentos. De acordo com especialistas, a tendência é que esse montante cresça nos próximos anos dado o envelhecimento populacional e alterações na pirâmide etária.

O professor ressalta que o setor de saúde responde por 24% de toda a inovação realizada no mundo. “É mais inovador que a área de defesa, que historicamente foi a base para a inovação”, diz.

O potencial econômico do investimento em inovação na área de saúde também foi destacado por Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-RJ).

“Da mesma forma que o petróleo e o aço foram um importante sistema produtivo para o século 20, a saúde e algumas outras áreas da economia digital o são para o século 21. Isso porque elas servem como alavanca para a geração de emprego e riquezas, bem como para o desenvolvimento econômico do país e o bem-estar da sociedade”, disse.

De acordo com dados de uma pesquisa realizada em 2020 pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), o mercado de remédios no Brasil cresceu em todos os anos de crise, passando de um faturamento de R$ 65 bilhões (2015) para R$ 86 bilhões (2019). “O mesmo se dá com o setor de saúde. Ele cresceu em todos os anos da crise, gerando empregos. Ao contrário do que se pensa, saúde é uma bela oportunidade para sair da crise”, afirmou.

Gadelha ressalta ainda que a pandemia de COVID-19 mostrou de forma muito veemente a interdependência entre saúde e economia. “Não é que exista um lado do mundo econômico, da ciência, da tecnologia e da inovação e, do outro lado, um mundo social e ambiental. Portanto, vimos que quem não tem capacidade científica, técnica e econômica, quem se especializa apenas na exportação de minério, corre o risco de se tornar uma grande fazenda. Não consegue nem se desenvolver a uma taxa de crescimento que permita a elevação sustentada da renda per capita”, afirmou.

E esse crescimento do setor de saúde está atrelado ao desenvolvimento de áreas de informação e conectividade. “As big techs estão todas no campo da saúde. Só para dar um exemplo: a vacina, que antes falávamos que era um segmento da indústria farmacêutica, não teria avançado sem genômica avançada, inteligência artificial, big data e outras tecnologias mais modernas. Nós não nos trataríamos da COVID-19 sem ventiladores, equipamentos de proteção individual, nem sem atenção básica, hospitais, serviços de diagnóstico e sem um grande serviço de informação e conectividade”, defendeu.

Fora isso, Gadelha destacou o fato de o SUS ser o maior sistema universal do mundo e a saúde representar 9% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, com a possibilidade de atingir 12% nos próximos anos. “É um sistema produtivo para o futuro e pode ser para o Brasil uma porta de entrada para a quarta revolução tecnológica”, disse.

Visão sistêmica

Além de centros de pesquisa, universidades e o próprio SUS, o ecossistema precisa que as empresas adotem a inovação como caminho para se desenvolverem no mercado global. “Muitas empresas têm construído núcleos de P&D [pesquisa e desenvolvimento], um fato que precisa ser comemorado. Mas, embora tenha ocorrido esse aumento nos últimos anos, a realidade é que as indústrias da área da saúde ainda investem pouco em inovação”, afirmou Arbix.

Algo preocupante quando se considera o desenvolvimento tecnológico do setor, ancorado em tecnologias complexas. “Com a pandemia, foi possível vislumbrar como serão os ensaios clínicos no futuro. Há uma tendência de que eles sejam cada vez mais globais [e não realizados em um só país ou instituição], a coleta de dados será conduzida pelos próprios pacientes por meio de wearables [dispositivos vestíveis] e a inteligência artificial passa a ser ponto central já no desenho dos ensaios clínicos. Tudo isso garante uma capacidade de análise muito maior, permitindo avançar na chamada medicina de precisão e analisar fatias maiores da população”, disse Luiz Rizzo, diretor do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.

Todos os especialistas reunidos concordam que outro grande entrave está na desarticulação das políticas públicas. Arbix destacou a necessidade de maior participação do Estado na coordenação e planejamento do setor, elencando áreas prioritárias de financiamento. “Eu não posso comprar um produto, desenvolver tecnologia de outro, financiar um terceiro e dar prioridade na educação, na propriedade intelectual, na regulação sanitária e na política industrial para outros produtos. Assim se cria um mostrengo. É preciso articular o poder de compra do Estado e as compras nacionais. Sem mercado não tem inovação”, concordou Gadelha.

Para o especialista da Fiocruz, o tripé poder de compra, CT&I e financiamento tem de estar de mãos juntas, puxando uma política educacional consistente em todos os níveis, além de integrar o arcabouço de política regulatória e educacional existentes.

O webinar “Desafios no Desenvolvimento de Fármacos e Biofármacos no Brasil” está disponível no canal da Agência FAPESP no YouTube.

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