‘As pessoas precisam entender que a gripe não é uma doença leve’, diz virologista da Fiocruz

RIO — Uma temida e anunciada tempestade perfeita de vírus respiratórios chegou antes de 2021 terminar. Veio com uma nova variante do vírus da gripe, a influenza Darwin/H3N2, que se alastra com o caminho aberto pelo relaxamento das medidas de distanciamento social e uso de máscara. A ela, se junta o temor pela variante do Sars-CoV-2 Ômicron. Contra ambas, as armas são as vacinas, afirma Marilda Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

O laboratório dela atua como Centro de Referência Nacional em vírus respiratórios junto ao Ministério da Saúde e como referência para a Organização Mundial de Saúde (OMS) em Covid-19 nas Américas. Siqueira é a única cientista de centros de pesquisa brasileiros a integrar o Comitê Científico sobre Evolução do Sars-CoV-2 da OMS que classifica e orienta medidas contra as novas variantes do coronavírus.

Estamos sob um duplo ataque de vírus respiratórios, o coronavírus Sars-CoV-2 e os influenza (gripe)?

Sim. A pandemia não acabou e a gripe (influenza) voltou com tudo. Os vírus influenza circularam muito pouco no Brasil e no mundo em 2020 e até agosto de 2021, mas, com o relaxamento das medidas não farmacológicas contra a Covid-19, voltaram.

O que mudou? Por que há tanta gente adoecendo com gripe?

Porque se criou o cenário ideal para a gripe, com uma combinação de fatores. As medidas não farmacológicas de controle do coronavírus — uso de máscara, higiene e distanciamento social — reduziram drasticamente a circulação dos demais vírus respiratórios, incluindo os influenza, por muitos meses. Só que nos últimos meses, com o avanço da vacinação contra a pandemia, os casos de Covid-19 diminuíram muito e essas medidas farmacológicas foram relaxadas, fazendo com que os vírus respiratórios voltassem a circular. Somado a isso, este ano a taxa de vacinação contra a influenza caiu muito.

Temos visto muitos casos entre adultos jovens, considerados mais resistentes. A gripe estaria mais transmissível?

Até agora não há prova disso, e é preciso analisar as séries históricas e comparar com anos passados. Porém, possivelmente estamos vendo apenas a gripe sendo a gripe e pegando todos os vulneráveis, e muita gente está vulnerável seja porque não se vacinou seja porque perdeu os anticorpos de infecções anteriores. Quando nos gripamos, produzimos anticorpos. Porém, assim como ocorre com a Covid-19, eles não duram muito, cerca de seis meses. Se o vírus está em circulação, e a pessoa volta a entrar em contato com ele, nossas defesas são reativadas. Como os vírus influenza praticamente não circularam por muitos meses, perdemos essas defesas e todo mundo ficou vulnerável.

A variante do vírus influenza que circula agora (H3N2) não é a mesma da vacina disponível nas redes pública e privada. Ainda assim, a vacina funciona?

Os vírus influenza sofrem ainda mais mutações que o coronavírus e, por isso, as vacinas mudam todos os anos, para que tenham a eficácia renovada. No entanto, mesmo não sendo a mesma variante, elas continuam a oferecer proteção suficiente para impedir o agravamento da gripe. A pessoa pode até adoecer, mas terá muito reduzido o risco de doença severa e morte. A vacina de 2021 pode não ser a mais potente contra a variante em circulação, mas é muito melhor do que nada.

Muita gente reclama que se vacinou e ficou gripada…

Isso acontece porque a vacina da gripe não tem potência suficiente para impedir o adoecimento. O foco é evitar o agravamento. As vacinas contra sarampo e rubéola, por exemplo, são excelentes e oferecem imunidade por muitos anos. Contra a gripe, não conseguimos chegar a uma  defesa tão boa. Sabemos que a partir de 80 anos a proteção cai ainda mais devido ao próprio enfraquecimento do sistema imunológico. A vacina da influenza não é o sonho de consumo, mas é o que se tem e precisamos dela. Além disso, precisamos lembrar que, se a pessoa se vacinou em abril, possivelmente, já não tem mais anticorpos.

É preciso se revacinar nesses casos?

É preciso haver orientação médica ou das autoridades de saúde. Mais importante é garantir o maior número possível de vacinados.

Por que não conseguimos imunidade duradoura contra a gripe?

Por uma série de motivos. Alguns são tecnológicos, outros têm a ver com a nossa própria imunidade, que não é a mesma para todos os vírus. Mas espero que em alguns anos tenhamos desenhos diferentes de vacinas, mais potentes.

O que muda na vacina da gripe em 2022?

Sai a variante A/Hong Kong/H3N2 e entra a que circula agora, a A/Darwin/H3N2. Também mudará uma cepa da influenza B, a Victoria.

Qual a origem do nome dessa variante, “Darwin”?

Ela nasceu nessa cidade da Austrália. Mas chega a soar como uma ironia do destino, predestinação, porque essa variante é um exemplo perfeito da Teoria da Evolução em ação. Fez exatamente o que se espera que um vírus faça, se não for controlado. Ele muta e surgem variantes mais adaptadas.

Muitas pessoas reclamam da intensidade dos sintomas. Este ano a gripe está mais agressiva?

A gripe pode apresentar intensidade diferente de um ano para outro. Porém, também precisamos analisar as séries históricas e ainda não há dados suficientes para uma comparação. As pessoas precisam entender que a gripe não é uma doença leve. Antes da pandemia de Covid-19, era muito temida e deve continuar a ser. Ela pode matar. Não se vai trabalhar nem se sai de casa gripado. Agora, ela pegou uma população vulnerável e está se espalhando, como a gripe sempre fez ao longo da História. É um inimigo perigoso. Não existe gripezinha. Esta é o resfriado, causado por outros vírus.

A senhora integra o comitê da OMS que batizou e classificou a Ômicron como variante de preocupação (VOC). Que fatores levaram a essa decisão?

Foi uma decisão difícil porque eram numerosos os aspectos a analisar e grandes as incertezas, pois precisamos descobrir ainda muitas coisas sobre a Ômicron. No entanto, concordamos que era melhor pecar por excesso e classificar a Ômicron como variante de preocupação. Ela tem mutações em áreas ligadas a escape de anticorpos e isso preocupa.  A realidade tem nos mostrado que estávamos certos. Com a Ômicron batendo à porta, quantos prefeitos convocaram suas equipes e prepararam planos de ação? Ao contrário, só se fala em relaxar medidas. Em saúde pública, devemos sempre nos preparar para o pior esperando o melhor. Isso salva vidas.

E o nome, por que se pulou o N, de Nu?

Por motivos fonéticos. Em inglês, a letra grega Nu pode soar como as iniciais da cidade de Nova York e também como o adjetivo “novo”. Além disso, haveria risco de confusão com a variante anterior, a Mu. Poderia dar margem a confusão e se tentou evitar qualquer tipo de ruído.

Saíram estudos recentes, embora pequenos, que sugerem que a Ômicron escapa dos anticorpos. O quanto isso abala a eficiência das vacinas?

Elas continuam a proteger e devem ser tomadas. Os anticorpos são apenas parte da resposta imunológica promovida pelas vacinas. Além disso, não sabemos o quão significativo é esse escape. E devemos tomar não apenas as vacinas da Covid-19, mas todas as vacinas.  São uma conquista.

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