Covid longa: pacientes ‘recuperados’ podem ter problemas de raciocínio e memória, aponta pesquisa

Cientistas acabam de detectar mais uma provável complicação de longo prazo da Covid-19: problemas cognitivos que prejudicam a memória, o raciocínio e a capacidade de resolução de problemas.

Em uma pesquisa que envolveu dezenas de milhares de voluntários, eles notaram que pacientes “recuperados” da doença infecciosa causada pelo coronavírus apresentaram resultados piores em testes que medem a cognição.

Em comparação com pessoas que não tiveram a enfermidade, a performance desses indivíduos chega a ser pior do que o desempenho de quem sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) ou foi diagnosticado previamente com problemas de aprendizagem.

Os achados vão de encontro ao que foi descrito por outros artigos científicos e também coincidem com a observação feita em muitos consultórios no Brasil e no mundo. Os médicos já vinham relatando que muitos pacientes se queixam de dificuldades de concentração e de se lembrar de objetos, eventos ou palavras no pós-Covid.

Algumas das tarefas que fazem parte do Great British Intelligence Test — Foto: Reprodução/Via BBC

Algumas das tarefas que fazem parte do Great British Intelligence Test — Foto: Reprodução/Via BBC

A pesquisa também enfraquece mais um pouco aquela tese de que a Covid-19 é apenas um quadro transitório e de curta duração, como uma “gripezinha”, e indica que os afetados pela doença deveriam ser acompanhados por mais tempo, até que a ciência compreenda melhor todos os efeitos de longo prazo e desenvolva possíveis tratamentos para eles.

Como foi feito o estudo?

 

Especialistas do Imperial College e do King’s College, duas instituições localizadas em Londres, no Reino Unido, criaram um questionário chamado Great British Intelligence Test (ou Grande Teste Britânico de Inteligência, na tradução literal).

Os gráficos resumem parte dos achados da pesquisa: as barras na cor cinza indicam o desvio resultados do teste entre os indivíduos que tiveram covid-19. Aqueles que precisaram de intubação (última barra à direita) apresentaram o pior desempenho em comparação com a média — Foto: Reprodução/Via BBC

Os gráficos resumem parte dos achados da pesquisa: as barras na cor cinza indicam o desvio resultados do teste entre os indivíduos que tiveram covid-19. Aqueles que precisaram de intubação (última barra à direita) apresentaram o pior desempenho em comparação com a média — Foto: Reprodução/Via BBC

 

Trata-se de um teste validado cientificamente que é dividido em 16 etapas. Cada uma delas tem o objetivo de medir uma habilidade mental, como a capacidade de fazer analogias verbais, definir palavras ou se lembrar e interpretar desenhos e fotografias.

O questionário, que pode ser preenchido pela internet, fez parte de um projeto e virou até documentário do programa Horizon, que foi ao ar na emissora BBC Two. O material também podia ser acessado pelo site da BBC News em inglês.

Essa visibilidade toda fez com que 81.337 pessoas, a grande maioria delas no Reino Unido, completassem toda a tarefa entre janeiro e dezembro de 2020. Na sequência, os pesquisadores identificaram 326 indivíduos que participaram da iniciativa e tiveram Covid-19 ao longo do ano passado, mas não precisaram ser internados.

Outros 192 respondentes sofreram com a forma mais severa da doença e passaram um tempo hospitalizados.

A ideia, então, foi comparar o desempenho cognitivo daqueles que se infectaram com os demais, que não foram diagnosticados com a enfermidade dentro do período estabelecido.

Quais foram os resultados?

 

Antes de entrar nos detalhes, vale destacar que os autores levaram em conta possíveis fatores de confusão na hora de montar os modelos estatísticos e fazer as contas. Esse cuidado é importantíssimo para evitar os chamados vieses, que são características ou condições dos voluntários que podem passar despercebidos, mas influenciam nos resultados finais.

Nessa pesquisa, foram controlados fatores como idade, gênero, nível educacional, renda, raça/etnia, doenças pré-existentes, cansaço, depressão e ansiedade.

O trabalho mostrou que quem passou pela Covid-19 teve uma performance inferior em comparação com quem não sofreu com a enfermidade.

A gravidade da doença também influenciou no desempenho: os indivíduos que foram internados se saíram pior ainda.

Quem precisou de intubação, por exemplo, apresentou -0,47 ponto em relação à média de todos os participantes (que tinham um 0 como valor de referência).

 

Já naqueles que pegaram o coronavírus mas ficaram em casa, sem necessidade de cuidados mais intensivos, essa pontuação ficou em -0,26.

Esses cálculos são extremamente complexos, mas levam em conta as notas que as pessoas tiraram no teste para montar uma média padrão. A partir daí, é possível contrastar com o resultado de grupos específicos (como os que tiveram Covid) e ver o quanto eles diferem dos demais participantes.

Para entender o que esses resultados entre os afetados pelo coronavírus significam, os pesquisadores britânicos indicaram que pessoas que tiveram AVC apresentaram um déficit de -0,24 no mesmo teste, enquanto indivíduos com dificuldades de aprendizagem ficaram com -0,38.

Ou seja: a capacidade cognitiva de indivíduos que tiveram casos graves de Covid-19 foi a mais afetada de todas.

“A título de comparação, 0,47 equivale a sete pontos num teste de QI [quociente de inteligência]”, escrevem os autores, no artigo que foi publicado no periódico científico E-Clinical Medicine, que pertence ao grupo The Lancet.

O que isso pode significar na prática?

 

O neurologista Lucas Schilling, professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), destaca que a Covid-19 é um motivo de preocupação em sua área de atuação e observa a chegada cada vez mais frequente de pacientes “recuperados” que se queixam de problemas cognitivos.

“Alguns tiveram quadro leve e evoluíram bem, mas reclamam de dificuldades de atenção, de raciocínio, de resolução de problemas ou de encontrar vocabulários”, relata.

“Esse conjunto de sintomas costuma ser descrito com o termo em inglês brain fog, que é como se fosse um nevoeiro mental após a Covid-19”, completa.

O trabalho britânico, portanto, coincide com algo que já era observado na prática médica e reforça aqueles conceitos de que a doença pode ir muito além da fase aguda, com os sintomas persistentes que costumam ser descritos como “Covid longa”.

O neurocientista Tristan Bekinschtein, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que não esteve envolvido com a pesquisa, chamou a atenção para o fato de as repercussões da Covid-19 na massa cinzenta terem aparecido tanto em pessoas que foram hospitalizadas quanto naquelas que tiveram um quadro mais leve.

“Ao deixarmos o coronavírus se espalhar pelas comunidades, estamos criando problemas para o futuro”, destacou no Twitter.

Já Christina Pagel, matemática especialista em sistemas de saúde da Universidade College London, usou as redes sociais para comentar o artigo e demonstrar sua preocupação com esses efeitos de longo prazo da Covid-19.

“Eu temo que mais uma vez estamos assistindo a um desastre acontecer na nossa frente enquanto esperamos evidências inequívocas sobre a Covid longa, que podem demorar meses ou anos para ficarem disponíveis”, analisou a especialista, que integra o Indie-Sage, um grupo independente que lança diretrizes de resposta à pandemia no Reino Unido.

“E até não restarem mais dúvidas sobre os problemas de longo prazo da Covid, nós teremos permitido que milhões de novas infecções tenham acontecido, com milhares de indivíduos afetados”, continuou. “Estima-se que, em junho de 2021, 634 mil pessoas sofram com os impactos da covid longa no Reino Unido. A título de comparação, são diagnosticados 260 mil casos de diabetes e 500 mil problemas cardíacos por ano no país.”

O trabalho acaba com todas as dúvidas da área?

 

Embora essa pesquisa do Imperial College e do King’s College traga muitas contribuições e represente um avanço para entender as repercussões da passagem do coronavírus pelo nosso organismo, ela também possui uma série de limitações.

A primeira delas é o fato de o questionário ser online e preenchido pelo próprio indivíduo, sem a supervisão de um profissional — há a chance, por exemplo, de alguns não terem entendido os exercícios ou passado pelas etapas sem a devida atenção.

Outro ponto a ser considerado são alguns fatores que estão relacionados à Covid-19, mas não diretamente a um eventual efeito do vírus no nosso cérebro. É o caso do estresse da internação, a necessidade de isolamento social e o impacto psicológico de saber que está com uma doença potencialmente fatal.

Todos esses ingredientes podem, sim, prejudicar certas habilidades cerebrais por algum tempo e levar a resultados piores em testes cognitivos como o que foi usado nessa pesquisa.

Por fim, os cientistas não chegaram a investigar a fundo o mecanismo de ação que liga as duas coisas (Covid-19 e problemas cognitivos), mas especulam que o cérebro poderia sofrer com as perdas momentâneas de oxigênio ou com um estado inflamatório descontrolado do organismo.

Os próprios autores, inclusive, reconhecem que o trabalho que fizeram “deve servir de chamariz para a necessidade de novas pesquisas, que acompanhem os voluntários por mais tempo e usem exames de imagem para entender a base biológica dos déficits cognitivos entre aqueles que sobreviveram ao coronavírus”.

Essa carência de novas investigações foi ratificada pelo neurocientista Adam Hampshire, autor principal da pesquisa, que também usou o Twitter para compartilhar alguns comentários.

“Há uma preocupante associação entre a Covid-19 e uma ampla gama de prejuízos à função cognitiva. Agora precisamos de mais pesquisas para determinar quanto tempo esses déficits duram e qual a sua explicação biológica e fisiológica”, escreveu.

Em outras palavras, o estudo britânico aponta o prejuízo cognitivo pós-Covid como uma possibilidade, que será confirmada (ou não) a partir de novas investigações científicas no futuro.

Tive Covid. Devo me preocupar?

 

Vale destacar que, por ser uma doença relativamente nova, a Covid-19 ainda está cercada de mistérios. Não existe um consenso ou um protocolo de como os pacientes devem ser acompanhados após melhorarem da fase aguda, que dura 14 dias ou mais e é marcada por aqueles sinais clássicos, como febre, tosse seca, cansaço, dor e dificuldade para respirar.

 

De maneira geral, Schilling orienta que todos fiquem atentos a possíveis sintomas mentais que podem aparecer no dia a dia.

Portanto, se você perceber que está com dificuldades para se concentrar, sofre com esquecimentos frequentes ou não está satisfeito com seu desempenho nas atividades profissionais ou sociais, é importante passar por uma avaliação.

“É claro que isso depende da realidade de cada um, mas se a pessoa tem a condição de marcar uma consulta médica, esse pode ser um bom caminho”, diz o neurologista, que também é pesquisador do Instituto do Cérebro da PUC-RS.

E, embora não existam tratamentos validados cientificamente para esse problema, é possível lançar mão de algumas estratégias para estimular o raciocínio e a memória.

“Em alguns casos, a reabilitação cognitiva com um psicopedagogo ou um neuropsicólogo pode ajudar”, finaliza Schilling.

Fonte: G1

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