‘O exame de colesterol deve ser feito a partir dos 10 anos de idade’, afirma cardiologista

A cardiologista Ieda Jatene,  filha de Adib Jatene (1929-2014), a maior referência na especialidade brasileira, dedicou sua vida ao tratamento do coração de crianças. Mais especificamente,  a uma má formação fetal chamada cardiopatia congênita, causadora de um número alto de mortes infantis no Brasil. Em janeiro de 2022, Ieda assumirá a presidência da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, 45 anos após seu pai exercer a mesma função. Em entrevista ao GLOBO, Jatene explica a importância de submeter as crianças ao exame de colesterol, mesmo as saudáveis, para prevenir o desenvolvimento de doenças cardíacas no futuro. Esclarece sobre a tão temida miocardite em crianças e adolescentes associada a vacinas adolescentes e carinhosamente fala de sua relação com seu pai, que além de mentor foi seu melhor amigo.

Recentemente, a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo começou a recomendar o exame de colesterol a partir dos 10 anos de idade e aos 2 anos de idade no caso de crianças com famílias com histórico de doenças cardiovasculares. Não é muito cedo?

Até alguns anos atrás a gente achava que um entupimento das artérias que pode levar ao infarto se desenvolvia na idade adulta. Que os fatores de risco para o problema, como o sedentarismo, a obesidade, o diabetes, a pressão alta e o próprio colesterol, só se encontravam na idade adulta. O passar dos anos foi mostrando que algumas situações começam a se desenvolver na infância. Existem até algumas teorias que falam de um desenvolvimento intraútero, mas isso ainda não está comprovado. O que os estudos foram mostrando é que a partir dos 10 anos é preciso começar a investigar as taxas por que muitas crianças já têm as alterações do colesterol e principalmente nessa faixa etária isso muitas vezes é dependente só de erro alimentar. E o estilo de vida das crianças começou a mudar muito ao longo dos anos. Antigamente se brincava na rua, as mães cuidavam da alimentação dos filhos. Então as crianças eram mais ativas fisicamente e tinham uma alimentação mais saudável do que se observa nos dias de hoje. Também se notou que em algumas crianças o colesterol alto se manifestava ainda mais cedo.  Então crianças que estão em famílias que os pais ou ascendentes diretos com colesterol muito alto, que precisa ser tratado, ou quando os pais têm doença coronariana antes dos 50 anos de idade, a recomendação é começar a monitorar a partir dos 2 anos de idade.

Qual é o impacto dos cuidados do coração da criança para a vida adulta?  

Quando você considera que o entupimento é também uma inflamação da camada mais interna dos vasos, incluindo as artérias coronárias e cerebrais, quando essas artérias se inflamam, elas podem ter o que se chama de injúria, como se fosse uma lesão dessa camada interna onde o sangue circula. Isso favorece o acúmulo de plaquetas, de gordura e de elementos que vão formando a placa que no futuro vai entupir ou destruir essas artérias. Quando você tem níveis mais controlados de gordura, a probabilidade de isto acontecer é menor. Então isso é prevenção também. Quanto mais você está controlado em termos do colesterol e triglicérides, menor é a probabilidade de você depositar isso nessa camada interna das artérias.

Quais foram os principais avanços na cardiologia pediátrica nos últimos anos?

Existem avanços de técnicas cirúrgica, no diagnóstico e no tratamento, com o aparecimento de diferentes medicamentos e drogas para serem usadas em diferentes situações. Mas um dos grandes avanços para a as cardiopatias congênitas foi o diagnóstico intraútero, que é feito através do ecocardiograma fetal. Isso não é feito de forma rotineira, mas é muito melhor do que já foi no passado. Hoje, os próprios obstetras, principalmente na saúde suplementar, encaminham para um ecocardiograma a partir de 24 semanas de vida. Na saúde pública, ainda não tem essa rotina e deveria ser feito porque o eco fetal visibiliza as cardiopatias mais graves com mais acurácia. Então é possível programar o parto, tanto em data quanto em lugar, para que essa nasça num hospital que já possa tratá-la logo após o nascimento. Isso traz muito benefício porque quando você trata no momento certo a criança numa condição pediátrica, o resultado é melhor. Quando não é feito o diagnóstico intraútero, o feto se transforma num recém-nascido que começa a manifestar os problemas depois que nasceu. Até se fazer o diagnóstico, até se conseguir um lugar para encaminhar, a criança se infecta, desidrata, desnutri e já chega para ser tratada numa condição que não é a ideal e talvez num momento da doença que já não é o momento mais favorável.

Recentemente, a miocardite passou de doença pouco conhecida para pauta de discussão por sua associação com a vacinação de crianças e adolescentes. O tema se disseminou recentemente com publicações nas redes sociais alertando para os riscos da doença com a vacinação de crianças, mas a Covid também causa miocardite. Afinal, o que é a miocardite e a vacina pode representar um risco para as crianças, em relação ao desenvolvimento desse problema especificamente?  

Antes de mais nada é preciso dizer que o valor da vacinação é inquestionável. A vacina é um dos principais mecanismos para se evitar doenças. Não só a Covid, mas todas as doenças, principalmente as virais. A miocardite é a inflamação do músculo cardíaco que evolui de formas muito variáveis e que pode ser causada por diversos fatores, não só a Covid-19. Ela tem vários sintomas, mas fundamentalmente é cansaço, falta de ar e dificuldade para fazer as atividades. O que a gente percebe é que a Covid é muito menos frequente e grave em crianças, mas ela é uma reação inflamatória do organismo que também pode inflamar o músculo cardíaco. Além disso, o risco de miocardite pela Covid em crianças é muito maior que o risco pela vacina.

O que a pandemia nos ensinou sobre a importância de cuidar da saúde do coração? 

O grande ensinamento é cuidar, cuidar cuidar. Prevenir. Porque quando a gente se previne é melhor do que a gente ter que tratar. A possibilidade de tratar tem, mas se a gente conseguir se prevenir, seria melhor. A gente percebe agora o quanto as pessoas deixaram de se tratar na pandemia. Agora que o cenário melhorou, os consultórios estão cheios e as pessoas estão procurando exames. Apesar de significar que as pessoas não se cuidaram tanto na pandemia, isso é bom porque mostra que as pessoas estão conscientes, estão entendendo que precisam se cuidar, que é importante ter esse olhar. As pessoas entenderam que precisam se cuidar até para terem uma qualidade de vida melhor.

Qual é a carga de ter o sobrenome Jatene e seguir na mesma profissão do seu pai? 

No começo da minha vida profissional isso era uma preocupação porque eu não queria decepcioná-lo. Queria que ele tivesse orgulho e queria seguir o nome dele. A vida ensinou, tanto a mim quanto aos meus irmãos, que o nome do meu pai abriu algumas portas para nós, sem nenhuma dúvida. E eu tenho muito orgulho de dizer isso. Com o trabalho dele, com a ética dele, com a credibilidade e a competência que ele tinha. Mas ele mesmo dizia para a gente “a porta pode abrir, mas você ficar dentro do lugar depende de você e não depende de mim”. Então nós três nos preparamos e nos estruturamos tecnicamente e pessoalmente para exercer a nossa profissão da melhor forma, com a maior transparência que a gente pudesse. Hoje, o nome do meu pai não é um peso para mim. Muito pelo contrário. É um orgulho. Poder levar o nome dele, o nome da minha família e com isso ajudar outras pessoas, é o que eu quero fazer.

Qual é a lembrança mais forte que a senhora tem do seu pai?  

Se eu tivesse que dizer alguma coisa do meu pai, eu diria que o meu pai era uma pessoa generosa e acolhedora. Embora ele tivesse toda a formalidade e aparência de que estava bravo, se você chegasse para ele e dissesse  “eu preciso de você”, e eu tive oportunidades disso na minha vida, ele parava o que ele estivesse fazendo, ouvia e sempre dava um acolhimento. Então a grande lembrança que eu tenho dele é do meu pai me beijando no rosto, como ele sempre fazia, me chamando de filhinha e me dizendo que estava do meu lado para o que eu precisasse. Deus me deu a oportunidade de conviver com ele e de estar muito presente no final da vida dele. Isso me deu muita tranquilidade de saber que eu fiz tudo o que eu podia para ele e de saber que ele está num lugar bom e que continua com a gente sempre.

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